São José – II

  Figura de São José – 2ª Parte.

 

É impossível escrever uma biografia sobre São José. Os dados que o Evangelho nos transmite são insuficientes para reconstruir uma vida. Por outro lado, o que nos transmite o Evangelho é significativo e nos permite uma consideração pausada, uma reflexão feita à luz da fé e tendo como base dados e fatos que pertencem à revelação. Esses fatos foram transmitidos certamente para algo: para nosso proveito e edificação.

Depois da Virgem Maria, José aparece como a pessoa mais unida à Santíssima Trindade. Sobre ele recaiu, em palavras de Pio IX, “a missão de guardar a virgindade e santidade de Maria; a missão de cooperar, sendo o único chamado a participar do conhecimento desse grande mistério oculto ao mundo, na Encarnação divina e na salvação do gênero humano”. Era bem clara a sua inferioridade em relação às pessoas que lhe iriam estar subordinadas. E que difícil é mandar em quem é superior a nós! Se não existe uma base de humildade bem arraigada, é quase inevitável cair no ressentimento provocado por um complexo de inferioridade, ou no apoucamento que se procura superar por meio de artifícios e convencionalismos.

São José nunca tentou superar nenhum complexo. Não buscou disfarçar aquilo que realmente é aos olhos dos outros. A sua figura tem o selo da autenticidade, de quem se aceita como é. Não estava preocupado com o que os pensam ou digam, o mesmo com sua ‘imagem’.

Apesar dessa sua diferença com relação à Virgem e ao Filho, o que Deus lhe pede está ao seu alcance. Como um chefe de família se lhe pede de cuidar do sustento e educação dos seus. Assim, age nesse mistério de redenção que está envolvido, limitando-se ao seu papel secundário, sem ter nada a ver diretamente com a missão redentora do Filho, como os apóstolos, sem ambições de nenhuma espécie, sem frustrações ou ressentimento de orgulho ferido, sem pretender sobressair do lugar e da tarefa que lhe compete, tudo isso requeria, sem dúvida, uma qualidade pouco comum.

É aqui que nossa reflexão se dá conta de suas qualidades humanas e sobrenaturais que o fizeram ser chamado de o ‘homem de confiança’ de Deus. Não estamos diante de um homem comum, como nos poderia sugerir alguns comentários, mas se revela como um arquétipo do que podemos chegar a ser – salvaguardando as devidas proporções – mesmo que nossas vidas não pareçam ultrapassar a mais comum e generalizada existência humana que em nada se sobressai aos demais. Assim afirma São José Maria Escrivá: “Soube viver, exatamente como o Senhor queria, todos e cada um dos acontecimentos que compuseram sua vida. Por isso a Sagrada escritura louva José, afirmando que era justo”. E certamente não se diz isso da maioria de nós.

Em José, Deus nos oferece um incentivo para fomentar a nossa esperança. Porque se não passamos de seres comuns, que nada nos distinga dos outros, sem qualidades que nos poiam em destaque, podemos, no entanto, aspirar mais do que aquilo que aparentemente somos destinados, por não termos qualidades especiais. “Trata-se, e não é pouco, de desempenhar bem, acabadamente, sem que falte nem sobre, sem excesso e sem defeito, a tarefa que cabe a cada um no plano de Deus, segundo a sua vocação peculiar, no lugar em que a devo executar” (Federico Suarez – José, Esposo de Maria).

Ainda que nossa luz deva brilhar diante dos homens, conforme diz Jesus, trata-se de realizar os pequenos e vulgares deveres cotidianos, com amor e humildade, com o fim de alegrar a Deus. Do que somos ao que nos tornamos, há uma luminosidade natural. Pois, “nenhum homem é desprezado por Deus. Todos, seguindo cada um a sua vocação – no seu lar, na sua profissão ou ofício, no cumprimento das obrigações que correspondem ao seu estado, nos seus deveres de cidadão, no exercício dos seus direitos – todos são chamados a participar do Reino dos Céus” (São José Escrivá). E José, o último patriarca, mostra-nos como, com este modo de viver, se pode chegar a ser um grande santo.

 

“Salve, guardião do Redentor e esposo da Virgem Maria! A vós, Deus confiou o seu Filho; em vós, Maria depositou a sua confiança; convosco, Cristo tornou-se homem. Ó Bem-aventurado José, mostrai-vos pai também para nós e guia-nos no caminho da vida. Alcançai-nos graça, misericórdia e coragem, e defendei-nos de todo mal. Amém!”  

Papa Francisco     

São José – Parte I


Apresentação:

Iniciamos agora os prometidos artigos sobre são José nesse ano a ele dedicado pelo Papa Francisco, antes que esse ano termine. Para essa empreitada vou me servir do que já foi escrito sobre o mesmo por alguns autores (citados dentro dos artigos), que de cara salientam a dificuldade de escrever sobre alguém que quase nada se tem historicamente registrado. Por isso, o que temos aqui não é uma biografia, mas reflexões em torno da figura de São José. O que afirmamos a seu respeito são considerações baseadas em alguns dados, nem sempre explícitos, mas revelados no Evangelho.

Em seu “Livro da Vida”, no capítulo 6, santa Teresa de Jesus nos deixa seu testemunho a respeito da sua devoção a são José: “... tomei por advogado e senhor o glorioso São José, encomendando-me muito a ele. [...]. Se a outros santos o Senhor parece ter concedido a graça de socorrer numa necessidade, a esse Santo glorioso, a minha experiência mostra que Deus permite socorrer em todas, querendo dar a entender, que São José, por ter-Lhe sido submisso na terra, na qualidade de pai adotivo, tem no céu todos os seus pedidos atendidos. [...]. Se eu fosse pessoa cujos escritos tivessem autoridade, de bom grado descreveria longamente as graças que esse glorioso Santo tem feito a mim e a outras pessoas; mas, para não fazer mais do que me mandaram, em muitas coisas serei mais breve do que gostaria e, em outras, me alargarei mais do que devo, como quem em tudo o que é bom tem pouca discrição. Só peço pelo amor de Deus, que quem me crê o experimente, vendo por experiência o grande bem que é encomendar-se a esse glorioso patriarca e ter-lhe devoção. As pessoas de oração, em especial, deveriam ser-lhe afeiçoadas; não sei como se pode pensar na Rainha dos Anjos, no tempo em que tanta angustia passou o Menino Jesus, sem se dar graças a São José pela ajuda que lhe prestou. Quem não encontrar mestre que ensine a rezar tome por mestre o glorioso Santo, e não errará no caminho. Queira o Senhor que eu não tenha cometido erro por me atrever a falar dele; pois, embora apregoando que lhe sou devota, em servi-lo e imitá-lo sempre falhei”.

Com esse espírito de Tereza me aproximo nessa escrita para falar desse santo pelo qual me afeiçoei particularmente nos anos que fui pároco da São José Operário, o que me levou a uma proximidade maior de sua figura na história salvífica. As pessoas foram me ajudando a compreender a importância de são José em suas vidas e na relação com o próprio Jesus.

 

 

A Figura de São José - 1ª Parte

 

 

São José não pertence àquele tipo de santos que despertam a nossa admiração e suscitam um desejo de repetir os seus gestos. Deveríamos antes situá-lo entre esse tipo de homens nos quais se, por causalidade, repararmos alguma vez, jamais nos sentimos impelidos a lançar um segundo olhar. Um homem comum que passa pelo Evangelho sem pronunciar uma só palavra. Nada escreveu. Não fez nada que ultrapassasse os limites das ações comuns.

De fato, São José não foi um homem brilhante. Não deixou nada de grandioso para a posteridade. É verdade que nem sequer tentou fazê-lo e, pelo que dele sabemos, não parece ter sido uma questão que lhe tirasse o sono ou que o submergisse na angústia. Mas, desde quando é que a qualidade de um ser humano, seu valor como tal, se medem pelo grau de brilhantismo que possa possuir? Há quem julgue os outros de acordo com certas normas convencionais, baseadas mais na aparência do que na realidade, e dão mais valor ao que é visível e externo do que ao que é verdadeiro, embora oculto.

Embora existam tantos seres humanos comuns, que nunca fizeram nada de especial que mereça ser narrado, mesmo assim poderá merecer muita estima, poderá ser uma pessoa boa. Mas ninguém tem tempo para se dedicar a contemplar todos os seres humanos bons que passaram por este mundo. Há coisas mais importantes a fazer, coisas mais urgentes, mais úteis, mais necessárias.

Se levarmos em conta os critérios desse mundo, o fato de Deus ter escolhido este homem para lhe confiar a guarda dos dois maiores tesouros que jamais houve na terra, Jesus e Maria, não tem muita importância. Um discípulo de Cristo nunca deve aceitar seja o que for, apenas pelo seu valor aparente. Essa avaliação não lhe serve; necessita de conhecer o seu valor real. E o valor real das coisas criadas, sejam quais forem, o seu valor mais profundo e verdadeiro, tem muito a ver com Deus, com Cristo, com o mundo sobrenatural e com a revelação.

Por isso, o fato de Deus ter escolhido José para esposo da Virgem Maria e pai legal de Jesus é motivo suficiente para pensar que, apesar de tudo, talvez não tenha sido um homem tão comum assim, uma vez que o próprio Deus o escolheu – mais ainda, o criou – para desempenhar uma das missões mais difíceis e de maior responsabilidade jamais confiada a um homem.

“É, porventura, esta consideração, a da escolha de José para esta missão peculiar que pode servir de ponto de partida para um conjunto de reflexões que nos levarão, muito provavelmente, a aumentar de modo considerável a estima e o respeito por este santo. Porque este homem que, aparentemente, não passa de ser um homem bom, uma personagem um tanto desvaída, que nunca fez nada de relevante, apresentasse-nos com uma categoria muito pouco corrente; este homem que não pronuncia uma só palavra na passagem pelo Evangelho, dá-nos, com seu silêncio, uma lição de esmagadora eloquência; este homem que não escreveu uma linha, nem nos legou um só pensamento, ensina-nos algumas lições tão profundas que é duvidoso que uma não pequena parte dos homens de hoje sejam capazes de as perceber, dada a pouca afeição que o homem contemporâneo sente pela reflexão, e o pouco tempo que o trabalho, os negócios, as pressas e o constante desejo (ou insatisfações?) de mudança lhe deixam para o fazer” (Federico Suarez – José, Esposo de Maria).  

 

O OITAVO MANDAMENTO E OS MANDAMENTOS DA IGREJA

 

O OITAVO MANDAMENTO

 

“Não apresentarás um falso testemunho contra o teu próximo” (Ex 20,16)

“Ouvistes também o que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas cumprirás os teus juramentos para com o Senhor” (Mt 5,33)

            O oitavo mandamento proíbe falsear a verdade nas relações com os outros. Essa proibição moral decorre da vocação do povo santo a ser testemunha de seu Deus, que é e quer a verdade. As ofensas à verdade exprimem, por palavras ou atos, uma recusa de abraçar a retidão moral: são infidelidades fundamentais a Deus e, neste sentido, minam as bases da Aliança. (CIC 2464)

 

1. Visão Geral. Cada mandamento traz um enunciado, mas aplica-se a muitas outras coisas. Ao mencionar um pecado específico contra a virtude a que o referido mandamento se aplica, a esse enunciado, como uma espécie de cabide, penduramos os outros pecados contra a mesma virtude.

            Assim, ao dizer que “não levantarás falso testemunho”, referindo-se explicitamente ao pecado da calúnia: prejudicar a reputação do próximo mentindo sobre ele, pecamos também contra a virtude da verdade e contra a virtude da caridade por palavras e obras (cf. CIC 2477).

            A calúnia é um dos piores pecados contra o oitavo mandamento, porque combina um pecado contra a verdade (mentir) com um pecado contra a justiça (ferir o bom nome alheio) e a caridade (falhar no amor devido ao próximo). A calúnia fere o próximo onde mais dói: na sua reputação. Se roubamos dinheiro a um homem, este pode irar-se ou entristecer-se, mas, normalmente, acabará por refazer-se dessa perda. Quando manchamos o seu bom nome, roubamos-lhe algo que todo o trabalho do mundo não lhe poderá devolver. É fácil ver, pois, que o pecado da calúnia é mortal se com ele prejudicamos seriamente a honra do próximo, ainda que seja na consideração de uma só pessoa e mesmo que esse próximo não tenha notícias do mal que lhe causamos.

 

2. Variantes. O prejuízo à reputação do próximo também pode dar-se na nossa própria mente: Juízo temerário. Se alguém inesperadamente (para mim) realiza uma boa ação, e eu me surpreendo pensando: “A quem estará tentando bajular?”, cometo um pecado de juízo temerário. Se alguém pratica um ato de generosidade, e eu digo para mim mesmo: “Aí está esse fulano bancando o herói”, peco contra o oitavo mandamento. Talvez não seja um pecado mortal, mas pode sê-lo facilmente se a reputação dessa pessoa sofre seriamente no meu juízo acerca dela, por causa da minha suspeita injusta.

A detração ou difamação (maledicência) – consiste em prejudicar a reputação alheia manifestando sem justo motivo pecados e defeitos alheios que são verdade, mas não comumente conhecidos: por exemplo, quando conto aos amigos ou vizinhos as terríveis brigas que tem o casal ao lado, ou lhes revelo que o marido chega bêbado a casa todos os sábados. Pode ser que haja ocasiões em que, para corrigir e prevenir, seja necessário revelar a um pai as más companhias do filho; ou que convenha informar a polícia de que certa pessoa saía furtivamente da loja que foi roubada, etc. Mas, habitualmente, quando começamos a dizer: “Acho que deveria contar-lhe...”, o que no fundo queremos dizer é: “Morro de vontade de contar-lhe, mas não quero reconhecer que adoro falar mal dos outros”.

            Mesmo que alguém fira a si mesma por uma conduta imoral, será sempre pecado para mim dar a conhecer sem necessidade seu mal comportamento. É o mesmo que roubar um ladrão, se eu roubo, peco. Não é pecado referir-se a fatos que são de conhecimento geral, mas, mesmo nestes casos, a caridade deve levar-nos a condenar o pecado, não o pecador, e a rezar por ele.

            Pecamos também quando escutamos com agrado a calúnia e a difamação, ainda que não digamos uma só palavra. Esse mesmo silêncio fomenta que se difundam murmurações maliciosas. Se o nosso gosto em escutar se deve a mera curiosidade, o pecado será venial. Mas se a atenção que prestamos for devido ao ódio à pessoa difamada, o pecado será mortal. Se se ataca a fama de alguém na nossa presença, temos o dever de cortar a conversa, ou, pelo menos, de mostrar pela nossa atitude que o tema não nos interessa.

O insulto pessoal (contumélia) – pecado que se comete contra o próximo na sua presença, e que se reveste de muitas formas. Por palavras ou obras, podemos recusar-lhe as manifestações de respeito e amizade que lhe são devidas, como, por exemplo, voltar-lhe as costas ou ignorar a mão que nos estende, falar-lhe de modo grosseiro ou desconsiderado, dirigir-lhe apelidos pejorativos. Um pecado parecido de grau menor é esse “criticismo” depreciativo, que encontra faltas em tudo e que, para muitas pessoas, parece constituir um hábito profundamente arraigado.

Intriga – É o pecado do mexeriqueiro que encontra que semeia discórdia, que corre a dizer ao Pedro o que o João comentou com ele. Também neste caso a intriga se faz preceder geralmente de um “acho que lhe conviria saber...”, quando, muito pelo contrário, seria melhor que Pedro ignorasse essa alusão que João fez acerca dele, uma alusão que talvez lhe tenha escapado por descuido ou num momento de irritação.

Mentira simples – que não causa prejuízo nem se diz sob juramento, é pecado venial. Costumam ser deste tipo as que se ouvem dos fanfarrões (e, muitas vezes, dos apaixonados pela pesca...). Como também as mentiras que se dizem para evitar uma situação embaraçosa para a própria pessoa ou para os outros. Também se incluem aqui as que são contadas pelos brincalhões zombeteiros. Mas, seja qual for a motivação de uma mentira, não dizer a verdade é sempre pecado.

            Mesmo considerando um pecado venial, não é lícito fazê-lo. No entanto, deve-se também mencionar que posso não dizer a verdade sem pecar quando injustamente procuram averiguar por meu intermédio alguma coisa sobre mim. O que eu venha a dizer neste caso poderá ser falso, mas não é uma mentira: é um meio lícito de autodefesa quando não resta alternativa. Também não há obrigação de dizer sempre toda a verdade. Infelizmente, há muitos xeretas neste mundo, que perguntam o que não têm o direito de saber. É perfeitamente legítimo dar a tais pessoas uma resposta evasiva.

            Há frases convencionais que aparentemente são mentiras, mas não o são na realidade porque qualquer pessoa inteligente sabe o que significam. São desculpas para não fornecer uma informação ou não atender alguém porque não se quer ou não se pode. O mesmo princípio se aplica a quem aceita como verídica uma história contada como piada, que qualquer pessoa com um pouco de talento percebe imediatamente.

Revelar segredos – A obrigação de guardar um segredo pode surgir de uma promessa feita, da própria profissão (médico, advogado, jornalista, etc.) ou simplesmente do dever de, por caridade, não divulgar o que pode ofender ou ferir o próximo. As únicas circunstâncias que permitem revelar segredos sem pecar são aquelas que tornam necessário fazê-lo para prevenir um mal maior à comunidade, a um terceiro inocente ou à própria pessoa que nos comunicou o segredo. Inclui-se neste tipo de pecado ler a correspondência alheia sem licença ou procurar ouvir conversas privadas. Nestes casos, a gravidade do pecado será proporcional ao mal ou ofensa causados.

 

3. Conclusão. Também este mandamento nos obriga a reparação. Se prejudiquei um terceiro por calúnia, difamação, insulto ou revelação de segredo que me foram confiados, o meu pecado não será perdoado se não procurar reparar o melhor que possa o mal causado. E isto é assim mesmo que essa reparação exija que me humilhe ou cause prejuízos a mim mesmo. Se caluniei, devo proclamar que me tinha enganado redondamente; se falei mal de alguém, tenho de compensar a minha difamação com elogios justos que movam à caridade; se insultei, devo pedir desculpas, publicamente, se o insulto foi público; se violei um segredo, devo reparar o mal causado da forma que puder o mais depressa possível.

            Tudo isso deve levar-nos a determinação sobre os propósitos que, sem dúvida, fizemos há tempos: o de não abrir a boca senão para não dizer o que estritamente pensamos ser verdade; o de nunca falar do próximo – ainda que digamos “umas tantas verdades” sobre ele -, a não ser para elogiá-lo; e, se temos que dizer de certa pessoa algo pejorativo para ela, o de fazê-lo obrigados por uma grave razão.

 

OS MANDAMENTOS DA IGREJA

 

            Antes de qualquer coisa é preciso ter claro que as leis da Igreja não nos obrigam menos que as de Deus, pois estas são praticamente o mesmo que as leis de Deus, porque são a sua aplicação. A Igreja existe para a promulgação de todas as leis necessárias para corroborar os seus ensinamentos em bem das pessoas: “Quem vos ouve, a mim ouve, e quem vos despreza, a mim despreza” (Lc 10,16).

            Pela nossa formação sabemos que as leis são em número de cinco ou seis, mas na verdade é muito mais, se levarmos em conta o Código de Direito canônico. Mesmo sendo numerosas, seis delas são as fundamentais e por isso as chamamos habitualmente os Mandamentos da Igreja, a saber: 1. Assistir à Missa inteira todos os domingos e festas de guarda; 2. Confessar os pecados mortais ao menos uma vez por ano e em perigo de morte ou se se tem de comungar; 3. Comungar pela Páscoa da Ressurreição; 4. Jejuar e abster-se de comer carne quando manda a Santa Madre Igreja; 5. Ajudar a Igreja nas suas necessidades; 6. Observar as leis da Igreja sobre o matrimônio.

 

1. Assistir à Missa aos domingos e festas de guarda – esta obrigação começa para cada católico quando completa sete anos. Além do domingo, a Igreja marca uns dias por ano e declara-nos, sob pena de pecado mortal, a ouvir missa e abster-nos do trabalho cotidiano na medida em que nos seja possível.

            O calendário da Igreja fixou dez desses dias, que são guardados na maioria dos países católicos. Em alguns países não oficialmente católicos – em que o calendário de trabalho não reconhece essas festas –, estes dias, além dos domingos, reduzem-se a poucos. Para o Brasil são santos de guarda: a solenidade da Santíssima Mãe de Deus (1º de janeiro), que comemora o dogma da Maternidade divina de Maria, fonte de todos os seus privilégios; o dia de Corpus Christi, solenidade do Santíssimo Corpo e Sangue de Cristo (quinta-feira depois do domingo da Santíssima Trindade), em que a Igreja adora a Presença Real de Cristo no sacramento da Eucaristia; a Imaculada Conceição de Maria (8 de dezembro), que celebra a criação da alma de Maria livre do pecado original, o primeiro dos passos da nossa redenção; e o dia de Natal (25 de dezembro), em que comemoramos o nascimento de Nosso Senhor (algumas solenidades que ocorrem em dias que não são feriados, foram transferidas para o domingo mais próximo, normalmente o domingo seguinte). Exemplo dessa transferência: Epifania (antigamente no dia 6 de janeiro), Ascensão do Senhor (antigamente na quinta-feira, seguinte aos quarenta dias após a Páscoa, Assunção de Maria (15 de agosto), Todos os Santos (1º de novembro), São Pedro e São Paulo (29 de junho). São José é solenidade e dia de guarda, mas não foi transferido para o domingo.

           

2. Os dias de jejum e abstinência. Práticas recomendadas pelos evangelhos, foram fixados num mínimo para todos, uma penitência que todos – com certos limites – devem fazer. Este mínimo estabelece uns dias de abstinência (em que não podemos comer carne) e outros de jejum e abstinência (em que devemos abster-nos de carne e tomar uma só refeição completa)[i].

 

3. A Confissão anual. Aquele que não faz a sua confissão anual torna-se réu de um novo pecado mortal se deixa passar mais de um ano sem receber outra vez o sacramento da penitência. Evidentemente, a Igreja não quer dizer-nos com isso que seja suficiente uma confissão por ano para os católicos praticantes. O sacramento da penitência reforça a nossa resistência à tentação e faz-nos crescer em virtude, se o recebemos com freqüência. É um sacramento tanto para os santos como para os pecadores.

           

4. Sobre a comunhão anual. A mesma preocupação pelas almas faz com que a Igreja estabeleça um mínimo absoluto de uma vez por ano para receber a Sagrada Eucaristia. Isto não é um limite. O próprio Jesus disse: Se não comerdes a carne do Filho do homem e não beberdes o seu sangue, não tereis a vida em vós (Jo 6,54). Com que freqüência devemos comungar? Com a freqüência que puder; semanal ou diariamente. Mas a obrigação absoluta é receber a Comunhão uma vez por ano, por ocasião da Páscoa.

 

5. Sustentação da Igreja. É uma obrigação decorrente da nossa natureza de membros do Corpo Místico de Cristo. Normalmente, atendemos a esta obrigação de ajuda material prestando nossa colaboração às diversas coletas organizadas pela paróquia ou pela diocese, com a generosidade que nossos meios permitem. Ajudamos também o Papa, para que atenda às necessidades da Igreja universal, em missões e obras de beneficência. Atualmente a prática da coleta organizada através do dízimo tem criado um novo sistema de manutenção das comunidades, apoio aos projetos sociais e obras de evangelização. Se perguntamos: “Quanto devo dar?”, não há resposta alguma além de recordar que Deus jamais se deixa vencer em generosidade.

 

6. Sobre o matrimônio. A lei básica que rege o sacramento do Matrimônio é que se deve recebê-lo na presença de um sacerdote autorizado (bispo, pároco ou outro sacerdote autorizado pelo mesmo) e de duas testemunhas. O sacramento do Matrimônio pode ser celebrado em qualquer tempo litúrgico, mas a Igreja admoesta os esposos a evitarem pompa quando se celebra nos tempos de Advento e Quaresma, que não são os mais apropriados.

            Para a recepção válida do matrimônio, o esposo deve ter no mínimo 16 anos de idade e a esposa 14. No entanto, se as leis civis estabelecerem uma idade superior, a Igreja as respeita, ainda que não esteja estritamente obrigada a fazê-lo. A preparação dos jovens que vão assumir a responsabilidade de uma família tem o maior interesse tanto civil como espiritualmente. Quanto aos efeitos civis do casamento, a Igreja reconhece o direito do estado de estabelecer a necessária legislação.

            Além de contar com a idade suficiente, os futuros esposos não devem ser parentes com laços de sangue mais próximos que os de primo em segundo grau (cf. CDC, cân. 1091). No entanto, se há graves razões, a Igreja concede a dispensa para que primos irmãos possam contrair matrimônio. A Igreja também dispensa, quando há razão suficiente, dos impedimentos resultantes do Batismo (casamento entre padrinho e madrinha e afilhado ou afilhada) ou do Matrimônio (casamento de um viúvo com a cunhada ou de uma viúva com o cunhado).

            A Igreja também determina que um católico despose uma católica, embora conceda dispensa para que um católico se case com uma não católica. Nestes casos, os contraentes devem seguir as leis da Igreja relativas ao casamento misto. O contraente católico deve comprometer-se a dar bom exemplo ao cônjuge não católico, levando uma vida exemplarmente católica. Deve também estar absolutamente disposto a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para que a prole seja educada na fé católica. Infelizmente, os casamentos mistos conduzem com certa freqüência ao enfraquecimento ou à perda da fé no esposo católico; à perda da fé nos filhos, que vêem os seus pais divididos em matéria religiosa; ou a ausência de uma felicidade completa na vida do lar por falta de um ingrediente básico: a unidade de fé. A Igreja mostra-se relutante em conceder essas dispensas, dada a triste experiência de uma Mãe que conta com vinte séculos de vida.

            O Cânone 1127 do CDC reza que se deve evitar absolutamente qualquer matrimônio ante um sacerdote católico e um ministro não católico que façam simultaneamente o rito de cada um. Da mesma forma não é lícito celebrar perante o sacerdote católico e – antes ou depois – procurar um ministro não católico para prestar ou renovar o consentimento matrimonial.

 

 



[i] Como Cristo morreu numa sexta-feira, a Igreja estabeleceu todas as sextas-feiras do ano – e também a quarta-feira de Cinzas – como dias obrigatórios de penitência. As conferências episcopais têm a faculdade de trocar a abstinência de carne por outras práticas de penitência cristã, como a oração, a esmola, outras mortificações, etc. Para o Brasil ficou determinado que nas sextas-feiras do ano, mesmo nas da Quaresma e incluídas a quarta-feira de Cinzas e a sexta-feira Santa, a abstinência de carne pode ser substituída, à escolha de cada um, por outras formas de penitência, principalmente por obras de caridade e exercícios de piedade, isto é, por algumas orações. Para quem optar pelo cumprimento da obrigação do jejum e da abstinência nesses dias, basta que tome uma só refeição completa, e até duas outras desde que, juntas, não formem uma refeição completa; além disso, nenhuma dessas refeições deveria incluir carne. A não observação dessa norma é caracterizada como pecado venial.

Os doentes que precisam de alimento, os que se ocupam em trabalhos pesados ou os que consomem o que podem ou quando podem (os muito pobres) estão dispensados das leis de jejum e abstinência. Aquele para quem jejuar ou abster-se de carne possa constituir um problema sério, podem obter dispensa do seu pároco. A lei da abstinência obriga os que tenham completado 14 anos, e dura toda a vida; a obrigação de jejuar começa quando se fazem dezoito anos e termina quando se entra nos sessenta.

Mês da Bíblia 2021: Carta aos Gálatas: “Todos vós sois um só em Cristo Jesus” Gl 3,28.


Apresentação: A Carta aos Gálatas nos prende por vários motivos. É um escrito de combate, vivo e direto. Mais do que as outras epistolas de Paulo, deixa transparecer o caráter ardoroso do Apóstolo, sua cólera, sua ternura, sua paixão em anunciar o Evangelho, seu amor do Cristo. Mas nossa sensibilidade contemporânea dará sobretudo preferência ao fato de que ‘Gálatas’ é a epístola da liberdade e da abertura. Já que Deus salva pela fé no Cristo, ninguém poderia se fazer escravo de uma Lei, de uma instituição ou de um sistema, por mais maravilhoso ou indispensáveis que sejam. Paulo convida à aventura da fé que não calcula nem leva a sério o medo e a segurança.

            Escrita no fogo da polêmica, a Epístola aos gálatas apresenta problemas variados de interpretação e suscitou numerosos comentários, muitas vezes divergentes. Já santo Agostinho irritou-se com são Jerônimo que via na disputa de Antioquia apenas uma encenação teatral. No século XVI, Lutero viu na epístola aos gálatas a esposa de sua alma; apoia-se sem cessar sobre ela a fim de sustentar a justificação pela fé ‘somente’ contra a religião das obras; novo Paulo, ele se levanta com firmeza contra Pedro para defender ‘a verdade do Evangelho’.

 

Localização: A Galícia não era uma cidade, mas uma região da Ásia Menor. Na segunda viagem missionária, Paulo atravessou ‘a Frígia e a região da Galácia’ (At 16,6), e aí fundou comunidades, depois visitadas (At 18,23) durante a terceira viagem (53-57). Nestas predominavam os pagãos convertidos; pois, segundo o esquema repetido por Lucas, os judeus rejeitaram Paulo e Barnabé. O livro dos Atos mostra que Paulo permaneceu longo tempo em Éfeso (At 19,1—21,1). Foi aí, provavelmente, que o Apóstolo teria notícia de um ataque contra ele e sua doutrina em meio às comunidades da Galácia. Alguns judeu-cristãos, ligados a certos círculos de Jerusalém, queriam impor aos pagãos convertidos a circuncisão e a observância da Lei mosaica. Além disso, ridicularizavam Paulo, negando a sua autoridade apostólica, porque ele não pertencia ao grupo dos Doze. Diziam também que a doutrina sobre a caducidade da Lei era invenção de Paulo, e não correspondia ao pensamento da Igreja de Jerusalém.

 

Origem:  A carta aos Gálatas foi escrita no fim da estada de Paulo em Éfeso, provavelmente no inverno de 56-57. É a única carta de Paulo que não começa com uma ação de graças e não termina com uma bênção, fato que testemunha a sua indignação. De fato, em tom agressivo, ele defende seu apostolado e doutrina, reafirmando que o Evangelho nada tem a ver com a Lei mosaica nem com qualquer outro tipo de espiritualidade legalista.

            Esta epístola foi escrita por ocasião de uma crise. Que perigo correm os gálatas? Quais os corresponsáveis pela crise? O risco que os gálatas corriam era retornar à servidão da qual Cristo os libertara. Tal servidão pode tomar duas formas, que talvez correspondam a duas influências diferentes, ambas combatidas pelo Apóstolo. Os principais responsáveis pela crise são seguramente judaizantes, cristãos de origem judaica que querem impor o jugo da Lei mosaica aos pagãos convertidos. Há outra servidão, que também ameaça os gálatas: a da ‘carne’. Ela resultaria de uma falsa ideia de liberdade, confundida com a licenciosidade moral (5,13).

 

Conteúdo e estrutura: A carta aos Gálatas foi definida como o manifesto da liberdade cristã e universalidade da Igreja. Daí sua importância. Contudo, libertação de quê e para quê? Libertação de uma vida programada externamente por um minucioso código de regras e leis, que conservam o homem numa atitude infantil diante da vida. Libertação para uma vida adulta e consciente, graças ao uso responsável da liberdade. A vida do homem não deve ser determinada por um código de leis, mas por compromisso pessoal e íntimo com Cristo, que está presente no profundo do ser humano (2,20). A liberdade é conduzida pelo amor a si mesmo e aos outros, amor que é compromisso ativo com o crescimento do outro (5,6.13-14).

            Paulo também vai reivindicar seu título e missão de apóstolo. Faz isso recorrendo a dados e histórias autobiográficas: formação, vocação, visita os chefes de Jerusalém, incidente com Pedro. Se se trata de judaísmo, ele é mais judeu que todos. Se se trata da lei e da Escritura, ele sabe argumentar com não menos força.

            A carta, embora apaixonada no tom, apresenta uma composição claramente coerente. Eis aqui a sinopse.

 

1,1-10 – Saudação e apresentação do tema: o evangelho único.

 

I – Parte autobiográfica: 1,11—2,21

1,11-21 – Formação e vocação de Paulo.

2,1-10 – Paulo e os outros apóstolos: é reconhecido em uma missão.

2,11-21 – Incidente com Pedro em Antioquia.

 

II – Parte doutrinal: 3,1—4,31

3,11-14 – Lei e fé: experiência do Espírito, exemplo de Abraão.

3,15-22 – Lei e Promessa.

3,23—4,31 – Escravidão, filiação e liberdade.

4,12-20 – Paulo e os gálatas.

4,21-31 – Agar e Sara.

 

III – Parte parenética (pregação): 5,1—6,10.

5,1-12 – Liberdade cristã.

5,13-26 – Guiados pelo Espírito.

6,1-10 – Ajuda mútua.

 

Conclusão e despedida (autógrafo de Paulo) – 6,11-18.

 

Conclusão e atualização: Ao ler a carta aos Gálatas, nós, cristãos de hoje, somos convidados a uma séria revisão: onde está a motivação fundamental que dirige a nossa vida cristã: numa série de observâncias mecânicas de leis e ritos? Ou no compromisso com Jesus Cristo, que se realiza através de amor responsável e criativo? A Igreja também é convidada a essa revisão de vida: ela realmente educa os filhos de Deus para a liberdade e a fé? Ou estabelece leis que escravizam e esterilizam a vida cristã? As instituições eclesiais visam colocar fronteiras de salvação? Ou procuram formar comunidades comprometidas com Jesus Cristo e abertas para servir a todos?

            O versículo proposto para o mês da Bíblia 2021 é retirado do ‘hino batismal’ (3,26-28), conhecido no cristianismo originário, anterior a Paulo, trata-se do fragmento de um credo conhecido pelas comunidades. Ao citar a fórmula já celebrada por outros grupos cristãos, o apóstolo demonstrou ter entendido a proposta e abraçado a causa na opção pelos gentios, na preocupação com os escravos e na emancipação feminina. Anunciava também a abertura de fronteiras no âmbito racial, com extensão para o religioso e o cultural: ‘Não há judeu nem grego’. O hino afirma que ‘todos’ foram ‘batizados’ e ‘vestidos’. A identidade se inicia, pela fé, com o batismo. Este aproxima gentios, mulheres, escravos, livres, homens, judeus, porque ‘todos vós sois filhos de Deus, pela fé em Cristo Jesus’, e ‘todos vós sois UM só em Cristo Jesus’. Acabaram os privilégios. Na Igreja se realizam as experiências da liberdade e da igualdade entre irmãos. Tudo e todos se transformam por causa da ‘unidade’ (UM SÓ) em Jesus Cristo.

            As pequenas comunidades cristãs rompiam com as discriminações e intolerâncias. Todos os ‘filhos de Deus’ eram chamados à experiência do amor (5,13-14). O hino batismal é um apelo à unidade, e toda a Carta aos Gálatas é uma conclamação à comunhão. Olhando o contexto vital atual e o Mês da Bíblia, perguntemo-nos: que barreiras alguns cristãos constroem hoje, provocando a desunião? Seria bom que cada leitor/a olhasse os muitos dados positivos da unidade eclesiológica entre nós.