Apresentação: A Carta aos Gálatas nos prende por vários motivos. É um
escrito de combate, vivo e direto. Mais do que as outras epistolas de Paulo,
deixa transparecer o caráter ardoroso do Apóstolo, sua cólera, sua ternura, sua
paixão em anunciar o Evangelho, seu amor do Cristo. Mas nossa sensibilidade
contemporânea dará sobretudo preferência ao fato de que ‘Gálatas’ é a epístola
da liberdade e da abertura. Já que Deus salva pela fé no Cristo, ninguém
poderia se fazer escravo de uma Lei, de uma instituição ou de um sistema, por
mais maravilhoso ou indispensáveis que sejam. Paulo convida à aventura da fé
que não calcula nem leva a sério o medo e a segurança.
Escrita no fogo da polêmica, a
Epístola aos gálatas apresenta problemas variados de interpretação e suscitou
numerosos comentários, muitas vezes divergentes. Já santo Agostinho irritou-se
com são Jerônimo que via na disputa de Antioquia apenas uma encenação teatral.
No século XVI, Lutero viu na epístola aos gálatas a esposa de sua alma;
apoia-se sem cessar sobre ela a fim de sustentar a justificação pela fé
‘somente’ contra a religião das obras; novo Paulo, ele se levanta com firmeza
contra Pedro para defender ‘a verdade do Evangelho’.
Localização: A Galícia não era uma cidade, mas uma região da Ásia Menor.
Na segunda viagem missionária, Paulo atravessou ‘a Frígia e a região da
Galácia’ (At 16,6), e aí fundou comunidades, depois visitadas (At 18,23)
durante a terceira viagem (53-57). Nestas predominavam os pagãos convertidos;
pois, segundo o esquema repetido por Lucas, os judeus rejeitaram Paulo e
Barnabé. O livro dos Atos mostra que Paulo permaneceu longo tempo em Éfeso (At
19,1—21,1). Foi aí, provavelmente, que o Apóstolo teria notícia de um ataque
contra ele e sua doutrina em meio às comunidades da Galácia. Alguns judeu-cristãos,
ligados a certos círculos de Jerusalém, queriam impor aos pagãos convertidos a
circuncisão e a observância da Lei mosaica. Além disso, ridicularizavam Paulo,
negando a sua autoridade apostólica, porque ele não pertencia ao grupo dos
Doze. Diziam também que a doutrina sobre a caducidade da Lei era invenção de
Paulo, e não correspondia ao pensamento da Igreja de Jerusalém.
Origem: A carta aos Gálatas foi escrita
no fim da estada de Paulo em Éfeso, provavelmente no inverno de 56-57. É a
única carta de Paulo que não começa com uma ação de graças e não termina com
uma bênção, fato que testemunha a sua indignação. De fato, em tom agressivo,
ele defende seu apostolado e doutrina, reafirmando que o Evangelho nada tem a
ver com a Lei mosaica nem com qualquer outro tipo de espiritualidade legalista.
Esta epístola foi escrita por
ocasião de uma crise. Que perigo correm os gálatas? Quais os corresponsáveis
pela crise? O risco que os gálatas corriam era retornar à servidão da qual
Cristo os libertara. Tal servidão pode tomar duas formas, que talvez
correspondam a duas influências diferentes, ambas combatidas pelo Apóstolo. Os
principais responsáveis pela crise são seguramente judaizantes, cristãos de
origem judaica que querem impor o jugo da Lei mosaica aos pagãos convertidos.
Há outra servidão, que também ameaça os gálatas: a da ‘carne’. Ela resultaria
de uma falsa ideia de liberdade, confundida com a licenciosidade moral (5,13).
Conteúdo e estrutura: A carta aos Gálatas foi definida como o manifesto da
liberdade cristã e universalidade da Igreja. Daí sua importância. Contudo,
libertação de quê e para quê? Libertação de uma vida programada externamente
por um minucioso código de regras e leis, que conservam o homem numa atitude
infantil diante da vida. Libertação para uma vida adulta e consciente, graças
ao uso responsável da liberdade. A vida do homem não deve ser determinada por
um código de leis, mas por compromisso pessoal e íntimo com Cristo, que está
presente no profundo do ser humano (2,20). A liberdade é conduzida pelo amor a
si mesmo e aos outros, amor que é compromisso ativo com o crescimento do outro
(5,6.13-14).
Paulo também vai reivindicar seu
título e missão de apóstolo. Faz isso recorrendo a dados e histórias
autobiográficas: formação, vocação, visita os chefes de Jerusalém, incidente
com Pedro. Se se trata de judaísmo, ele é mais judeu que todos. Se se trata da
lei e da Escritura, ele sabe argumentar com não menos força.
A carta, embora apaixonada no tom,
apresenta uma composição claramente coerente. Eis aqui a sinopse.
1,1-10 – Saudação e
apresentação do tema: o evangelho único.
I – Parte autobiográfica: 1,11—2,21
1,11-21 – Formação e
vocação de Paulo.
2,1-10 – Paulo e os
outros apóstolos: é reconhecido em uma missão.
2,11-21 – Incidente
com Pedro em Antioquia.
II – Parte doutrinal: 3,1—4,31
3,11-14 – Lei e fé:
experiência do Espírito, exemplo de Abraão.
3,15-22 – Lei e
Promessa.
3,23—4,31 –
Escravidão, filiação e liberdade.
4,12-20 – Paulo e os
gálatas.
4,21-31 – Agar e Sara.
III – Parte parenética (pregação): 5,1—6,10.
5,1-12 – Liberdade
cristã.
5,13-26 – Guiados pelo
Espírito.
6,1-10 – Ajuda mútua.
Conclusão e despedida (autógrafo de Paulo) – 6,11-18.
Conclusão e atualização: Ao ler a carta aos Gálatas, nós, cristãos de hoje,
somos convidados a uma séria revisão: onde está a motivação fundamental que
dirige a nossa vida cristã: numa série de observâncias mecânicas de leis e
ritos? Ou no compromisso com Jesus Cristo, que se realiza através de amor
responsável e criativo? A Igreja também é convidada a essa revisão de vida: ela
realmente educa os filhos de Deus para a liberdade e a fé? Ou estabelece leis
que escravizam e esterilizam a vida cristã? As instituições eclesiais visam colocar
fronteiras de salvação? Ou procuram formar comunidades comprometidas com Jesus
Cristo e abertas para servir a todos?
O versículo proposto para o mês da
Bíblia 2021 é retirado do ‘hino batismal’ (3,26-28), conhecido no cristianismo
originário, anterior a Paulo, trata-se do fragmento de um credo conhecido pelas
comunidades. Ao citar a fórmula já celebrada por outros grupos cristãos, o
apóstolo demonstrou ter entendido a proposta e abraçado a causa na opção pelos
gentios, na preocupação com os escravos e na emancipação feminina. Anunciava
também a abertura de fronteiras no âmbito racial, com extensão para o religioso
e o cultural: ‘Não há judeu nem grego’. O hino afirma que ‘todos’ foram
‘batizados’ e ‘vestidos’. A identidade se inicia, pela fé, com o batismo. Este
aproxima gentios, mulheres, escravos, livres, homens, judeus, porque ‘todos vós
sois filhos de Deus, pela fé em Cristo Jesus’, e ‘todos vós sois UM só em
Cristo Jesus’. Acabaram os privilégios. Na Igreja se realizam as experiências
da liberdade e da igualdade entre irmãos. Tudo e todos se transformam por causa
da ‘unidade’ (UM SÓ) em Jesus Cristo.
As pequenas comunidades cristãs
rompiam com as discriminações e intolerâncias. Todos os ‘filhos de Deus’ eram
chamados à experiência do amor (5,13-14). O hino batismal é um apelo à unidade,
e toda a Carta aos Gálatas é uma conclamação à comunhão. Olhando o contexto
vital atual e o Mês da Bíblia, perguntemo-nos: que barreiras alguns cristãos
constroem hoje, provocando a desunião? Seria bom que cada leitor/a olhasse os
muitos dados positivos da unidade eclesiológica entre nós.
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