Mês da Bíblia 2021: Carta aos Gálatas: “Todos vós sois um só em Cristo Jesus” Gl 3,28.


Apresentação: A Carta aos Gálatas nos prende por vários motivos. É um escrito de combate, vivo e direto. Mais do que as outras epistolas de Paulo, deixa transparecer o caráter ardoroso do Apóstolo, sua cólera, sua ternura, sua paixão em anunciar o Evangelho, seu amor do Cristo. Mas nossa sensibilidade contemporânea dará sobretudo preferência ao fato de que ‘Gálatas’ é a epístola da liberdade e da abertura. Já que Deus salva pela fé no Cristo, ninguém poderia se fazer escravo de uma Lei, de uma instituição ou de um sistema, por mais maravilhoso ou indispensáveis que sejam. Paulo convida à aventura da fé que não calcula nem leva a sério o medo e a segurança.

            Escrita no fogo da polêmica, a Epístola aos gálatas apresenta problemas variados de interpretação e suscitou numerosos comentários, muitas vezes divergentes. Já santo Agostinho irritou-se com são Jerônimo que via na disputa de Antioquia apenas uma encenação teatral. No século XVI, Lutero viu na epístola aos gálatas a esposa de sua alma; apoia-se sem cessar sobre ela a fim de sustentar a justificação pela fé ‘somente’ contra a religião das obras; novo Paulo, ele se levanta com firmeza contra Pedro para defender ‘a verdade do Evangelho’.

 

Localização: A Galícia não era uma cidade, mas uma região da Ásia Menor. Na segunda viagem missionária, Paulo atravessou ‘a Frígia e a região da Galácia’ (At 16,6), e aí fundou comunidades, depois visitadas (At 18,23) durante a terceira viagem (53-57). Nestas predominavam os pagãos convertidos; pois, segundo o esquema repetido por Lucas, os judeus rejeitaram Paulo e Barnabé. O livro dos Atos mostra que Paulo permaneceu longo tempo em Éfeso (At 19,1—21,1). Foi aí, provavelmente, que o Apóstolo teria notícia de um ataque contra ele e sua doutrina em meio às comunidades da Galácia. Alguns judeu-cristãos, ligados a certos círculos de Jerusalém, queriam impor aos pagãos convertidos a circuncisão e a observância da Lei mosaica. Além disso, ridicularizavam Paulo, negando a sua autoridade apostólica, porque ele não pertencia ao grupo dos Doze. Diziam também que a doutrina sobre a caducidade da Lei era invenção de Paulo, e não correspondia ao pensamento da Igreja de Jerusalém.

 

Origem:  A carta aos Gálatas foi escrita no fim da estada de Paulo em Éfeso, provavelmente no inverno de 56-57. É a única carta de Paulo que não começa com uma ação de graças e não termina com uma bênção, fato que testemunha a sua indignação. De fato, em tom agressivo, ele defende seu apostolado e doutrina, reafirmando que o Evangelho nada tem a ver com a Lei mosaica nem com qualquer outro tipo de espiritualidade legalista.

            Esta epístola foi escrita por ocasião de uma crise. Que perigo correm os gálatas? Quais os corresponsáveis pela crise? O risco que os gálatas corriam era retornar à servidão da qual Cristo os libertara. Tal servidão pode tomar duas formas, que talvez correspondam a duas influências diferentes, ambas combatidas pelo Apóstolo. Os principais responsáveis pela crise são seguramente judaizantes, cristãos de origem judaica que querem impor o jugo da Lei mosaica aos pagãos convertidos. Há outra servidão, que também ameaça os gálatas: a da ‘carne’. Ela resultaria de uma falsa ideia de liberdade, confundida com a licenciosidade moral (5,13).

 

Conteúdo e estrutura: A carta aos Gálatas foi definida como o manifesto da liberdade cristã e universalidade da Igreja. Daí sua importância. Contudo, libertação de quê e para quê? Libertação de uma vida programada externamente por um minucioso código de regras e leis, que conservam o homem numa atitude infantil diante da vida. Libertação para uma vida adulta e consciente, graças ao uso responsável da liberdade. A vida do homem não deve ser determinada por um código de leis, mas por compromisso pessoal e íntimo com Cristo, que está presente no profundo do ser humano (2,20). A liberdade é conduzida pelo amor a si mesmo e aos outros, amor que é compromisso ativo com o crescimento do outro (5,6.13-14).

            Paulo também vai reivindicar seu título e missão de apóstolo. Faz isso recorrendo a dados e histórias autobiográficas: formação, vocação, visita os chefes de Jerusalém, incidente com Pedro. Se se trata de judaísmo, ele é mais judeu que todos. Se se trata da lei e da Escritura, ele sabe argumentar com não menos força.

            A carta, embora apaixonada no tom, apresenta uma composição claramente coerente. Eis aqui a sinopse.

 

1,1-10 – Saudação e apresentação do tema: o evangelho único.

 

I – Parte autobiográfica: 1,11—2,21

1,11-21 – Formação e vocação de Paulo.

2,1-10 – Paulo e os outros apóstolos: é reconhecido em uma missão.

2,11-21 – Incidente com Pedro em Antioquia.

 

II – Parte doutrinal: 3,1—4,31

3,11-14 – Lei e fé: experiência do Espírito, exemplo de Abraão.

3,15-22 – Lei e Promessa.

3,23—4,31 – Escravidão, filiação e liberdade.

4,12-20 – Paulo e os gálatas.

4,21-31 – Agar e Sara.

 

III – Parte parenética (pregação): 5,1—6,10.

5,1-12 – Liberdade cristã.

5,13-26 – Guiados pelo Espírito.

6,1-10 – Ajuda mútua.

 

Conclusão e despedida (autógrafo de Paulo) – 6,11-18.

 

Conclusão e atualização: Ao ler a carta aos Gálatas, nós, cristãos de hoje, somos convidados a uma séria revisão: onde está a motivação fundamental que dirige a nossa vida cristã: numa série de observâncias mecânicas de leis e ritos? Ou no compromisso com Jesus Cristo, que se realiza através de amor responsável e criativo? A Igreja também é convidada a essa revisão de vida: ela realmente educa os filhos de Deus para a liberdade e a fé? Ou estabelece leis que escravizam e esterilizam a vida cristã? As instituições eclesiais visam colocar fronteiras de salvação? Ou procuram formar comunidades comprometidas com Jesus Cristo e abertas para servir a todos?

            O versículo proposto para o mês da Bíblia 2021 é retirado do ‘hino batismal’ (3,26-28), conhecido no cristianismo originário, anterior a Paulo, trata-se do fragmento de um credo conhecido pelas comunidades. Ao citar a fórmula já celebrada por outros grupos cristãos, o apóstolo demonstrou ter entendido a proposta e abraçado a causa na opção pelos gentios, na preocupação com os escravos e na emancipação feminina. Anunciava também a abertura de fronteiras no âmbito racial, com extensão para o religioso e o cultural: ‘Não há judeu nem grego’. O hino afirma que ‘todos’ foram ‘batizados’ e ‘vestidos’. A identidade se inicia, pela fé, com o batismo. Este aproxima gentios, mulheres, escravos, livres, homens, judeus, porque ‘todos vós sois filhos de Deus, pela fé em Cristo Jesus’, e ‘todos vós sois UM só em Cristo Jesus’. Acabaram os privilégios. Na Igreja se realizam as experiências da liberdade e da igualdade entre irmãos. Tudo e todos se transformam por causa da ‘unidade’ (UM SÓ) em Jesus Cristo.

            As pequenas comunidades cristãs rompiam com as discriminações e intolerâncias. Todos os ‘filhos de Deus’ eram chamados à experiência do amor (5,13-14). O hino batismal é um apelo à unidade, e toda a Carta aos Gálatas é uma conclamação à comunhão. Olhando o contexto vital atual e o Mês da Bíblia, perguntemo-nos: que barreiras alguns cristãos constroem hoje, provocando a desunião? Seria bom que cada leitor/a olhasse os muitos dados positivos da unidade eclesiológica entre nós.

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