O Livro dos Números


Sobre o título:

O livro que nós chamamos Números é chamado pelos judeus ‘No deserto’, tomando como de costume as palavras iniciais para designá-lo. Este segundo título é descritivo, porque a narração começa com os israelitas no Sinai e os vai transladando até os campos de Moab. O título Números está também relacionado com um grande recenseamento do povo hebreu no deserto (1—4). É o mais complexo livro do Pentateuco. O translado se reparte em três unidades: 1,1—10,10, no Sinai preparando-se para a viagem; 10,11—20,13, em torno a Cades; 20,14—36,13, caminhada até Moab, preparando-se para a ocupação da terra.

Os quarentas anos exatos e os quarenta nomes do itinerário (cap. 33) não dissimulam a irregularidade da viagem, o caráter episódico dos relatos. Deve-se isso às tradições históricas ou lendárias, recolhidas e organizadas na obra. O livro é um alternar-se de leis ou disposições e historietas ou relatos, com alguns poemas intercalados. Nem sempre se descobre o critério de tal montagem, e o leitor moderno se sente desconcertado. O comentário terá de levar em conta essas alternâncias.

 

Temas dominantes:

a)      A terra prometida que dinamiza e polariza o movimento: desdenham-na por medo (13-14), começam a ocupá-la (32), vão reparti-la definindo normas de herança e designando cidades para levitas e de refúgio.

b)      Guerras externas e lutas internas: Madiã, Horma, Edom, Moab, Basã, o adivinho. Rebeliões: do povo contra os chefes (11-14; 21,4-9); de levitas e chefes (16-17).

c)      Protagonistas: como grupo corporativo, os levitas dominam este livro. Acima de todos, sobressai a figura heroica e crescente de Moisés.

 

Visão Geral e Mensagem:

Para os hebreus, a saída do Egito foi uma lenta e penosa caminhada em busca de uma terra. Neste livro a caminhada se transforma em majestosa marcha organizada de todo o povo, como uma procissão ou um exército. As tribos de Israel estão todas presentes, formando o esquadrão de Deus, cada uma com o seu estandarte e avançando em rigorosa formação. No centro de tudo vai a arca da Aliança. Isso mostra que o livro não pretende narrar fatos históricos, mas quer nos transmitir mensagens. Assim como os antepassados saíram da escravidão do Egito para chegar à terra de Canaã, do mesmo modo todo o povo de Deus é peregrino e caminha para o Reino prometido por Jesus. A organização mostra que dentro do povo de Deus. E a arca da Aliança no centro indica que, nessa caminhada, Deus está sempre presente no meio do seu povo.

O livro mostra também, e com muito realismo, que dentro dessa organização existem fortes conflitos (Nm 16), e que seus chefes estão sujeitos a fraquezas e desânimos, por mais importantes que eles sejam na comunidade.

Em Nm 22 a 24 temos a história de Balaão e a sua burrinha. Essa história mostra como um adivinho estrangeiro se torna um verdadeiro profeta de Deus. Com essa narração, o livro quer mostrar que dentro da caminhada do povo de Deus para a Terra Prometida deve haver sempre um lugar para o profeta.

O deserto foi o tempo da grande disciplina e pedagogia para o povo de Deus. Não basta estar livre: é preciso aprender a viver a liberdade e conquistá-la continuamente para não voltar a ser escravo outra vez. No deserto Israel teve que superar muitas tentações: acomodação, desânimo, vontade de voltar para trás, desconfianças de Deus e dos líderes, imprudência etc. Foi no confronto com essas situações que ele descobriu o que significa ser livre para construir uma sociedade justa e fraterna, alicerçada na liberdade e voltada para a vida. Visto sob essa perspectiva, o livro dos Números nos ensina que qualquer transformação profunda exige um longo período de educação e amadurecimento.

O livro dos Números é, ao mesmo tempo, o quadro idealizado do povo santo e a história muito realista da primeira fase de sua existência. Esse duplo título confere-lhe um interesse permanente. Na descrição idealizada, o povo de Deus poderá encontrar sempre um modelo. Não deve imitar servilmente as instituições que foram expressão concreta do ideal de Israel; mas pode ler ali alguns dos princípios aos quais deve adaptar a sua vida. Assim, a Igreja terá sempre necessidade de Números para lembrar-lhe que ela é um povo em marcha, um povo de profetas, regido pela palavra de Deus, dedicado ao culto do Senhor.

 

Na Liturgia da Palavra: Encontremos textos desse livro no 26º Domingo do Tempo Comum – Ano B; na 2ª feira da 3ª Semana do Advento; na 3ª feira da 5ª semana da Quaresma e também na 18ª Semana do Tempo Comum, ano ímpar, de 2ª a 5ª feira.    

O Livro do Levítico

  

Introdução – Todo o Pentateuco (os cinco primeiros livros da Bíblia) tem como autor Moisés. Ele seria o inspirador de toda a legislação hebraica antiga, criou a tradição jurídica e historiográfica de Israel; deu-lhe fundamento e suas grandes linhas.  Os semitas possuem um conceito especial de totalidade: no núcleo inicial já está incluído toda a evolução posterior, daí atribuir o conjunto inteiro ao autor do núcleo. Certamente são muitas as mãos que formam o Pentateuco, mas isso não exclui a sua inspiração: seus redatores, iluminados pelo Senhor, foram distinguindo, em suas fontes e conhecimentos, o que correspondia e o que não correspondia à mensagem que o Senhor por ele (ou por eles) queria comunicar aos homens. Assim iluminados ou inspirados, só incluíram no texto canônico do Pentateuco os elementos portadores de uma autêntica lição religiosa. É nesse mundo que situa-se o livro do Levítico.

 

1. Levítico – livro dos levitas ou sacerdotal; este trata das leis do culto (1,1—10,20) e da santidade do povo (11,1—27,34). Seu caráter é quase exclusivamente legislativo, e assim interrompe a narração dos acontecimentos. Estrutura do conteúdo:

 

1—7: Um ritual dos sacrifícios.

8—10: cerimonial de investidura dos sacerdotes (Aarão e filhos).

11—15: normas referentes ao puro e impuro.

16: ritual do grande dia das Expiações.

17—26: a lei da santidade. Um calendário litúrgico (23). Bênção e maldições (26).

27: (apêndice) condições de resgate de pessoas, animais e bens consagrados a Javé.

 

- Leitura cristã: O Levítico pode ser lido com mais proveito em conexão com os últimos capítulos de Ezequiel ou depois dos livros de Esdras e Neemias. 

 

2. Olhar panorâmico: Em Ex 40,16-33 temos a construção da Tenda do Encontro; Deus passa a habitar no meio do seu povo a partir desse local/símbolo. Deus legitima essa nova relação com o seu povo (Lv 1,1). Nos 27 capítulos que compõem o nosso livro, Deus transmite a seu povo “suas leis e costumes”, é praticando-as que o homem tem vida.

- A preocupação é o bom uso dessa ‘tenda’, para que seja verdadeiramente um lugar de ‘encontro’. A descrição minuciosa é para que nenhum erro ritual (1—10), nenhuma impureza física (11—16) ou uma infidelidade moral (17—26) causem obstáculo a essa comunhão vital.

- Nem todo o conteúdo do culto de Israel está expresso nesse livro. Talvez no saltério encontremos os cantos e orações que acompanhavam tais ritos. É bem verdade que os profetas e sábios lembravam a Israel que a execução do rito não bastava para proporcionar a salvação, mas o autor quer fazer penetrar na consciência dos fiéis que a comunhão com Deus é a verdade última do homem.

- O livro, mesmo trazendo uma redação coerente, traz elementos rituais que remontam diversas épocas, particularmente o momento em que o poder político do sacerdócio vai aumentando, já que não existe mais rei e o profetismo está em vias de desaparecimento.

- 1ª Seção (1—7): as diversas categorias de sacrifícios que o Israelita pode (ou deve) oferecer a Deus, em certas circunstâncias. Não se fala sobre a origem ou significação dos sacrifícios e rituais. Se deduz que seus ritos tiveram inspiração nas religiões do antigo Oriente e que deu a estes ritos um conteúdo novo, correspondente à sua visão do mundo e ao seu conhecimento de Deus.

- 2ª Seção (8—10): As cerimônias que acontecem quando Aarão e seus filhos foram investidos de poder sacerdotal. Em ligação com o livro do Êxodo, os sacerdotes aparecem aqui claramente na sua função mediadora o que implica uma exigência particular de santidade (intermediário entre Deus e o povo).

- 3ª Seção (11—16): Elenca diversas categorias de impurezas que impedem o homem de entrar em contato com Deus.

- 4ª Seção (17—26): Visão global: código ou lei da santidade. Se Deus é santo, este povo que escolheu, que lhe é consagrado, deve procurar tudo o que facilita a comunhão com Deus e evitar tudo o que, física ou moralmente, põe obstáculo a essa comunhão vital:

* não consumir o sangue, que é a sede da vida dada por Deus;

*recusar quaisquer relações sexuais anormais;

* respeitar a Deus enquanto único Deus, e o homem enquanto criatura de Deus;

* garantir a dignidade do sacerdócio e dos sacrifícios e celebrar fielmente as festas e os anos santos.

 

Conclusão: entre os livros do AT, é o menos lido pelos cristãos. Não é de acesso fácil, e parece só falar de práticas que caducaram em virtude da nova aliança. Mas isso não quer dizer que não tenham nenhum valor para nós hoje. Toda essa prática ritual, herdada e renovada, procurou celebrar em concordância coma fé que professava. Seu objetivo era exprimir e realizar a reconciliação e a comunhão do povo santo com o Deus santo. Por isso que os profetas zelavam pela pureza da fé de Israel.

- Festas e ritos variam de acordo com os tempos e os lugares, mas nelas permanece o desejo de exprimir a fé pela festa comunitária e pela linguagem do corpo. Mesmo as críticas dos profetas e o abandono das práticas do antigo judaísmo, não se pode eliminar o valor deste livro. A presença dele é responder à necessidade humana de exprimir a fé por gestos religiosos, e ao mesmo tempo em que anuncia e prepara a vinda daquele que traz nas suas palavras e realiza em sua vida a reconciliação e a comunhão do homem com Deus.

 

- Um texto para a nossa reflexão: Lv 19,1-2.17-18 (7º Domingo do Tempo Comum – Ano A).

 V. 2: “Sede santos...” Convite de Deus dirigido a seu povo. O que é ser santo? Aquele que viveu de maneira exemplar, que foi para o céu, que é invocado com fé, pode até fazer milagres... dizemos nós. Na Bíblia, santo tem um sentido mais amplo: separado, consagrado a Deus.

Santos eram os templos: estavam ‘separados’ do mundo profano e reservados à divindade. Quem ultrapassa a soleira de um templo sai do mundo dos homens e entra no mundo de Deus, por isso devia se submeter a inúmeros e complicados rituais de purificação.

Santos eram os objetos: não podiam ser misturados com as coisas do uso cotidiano.

Santos eram as pessoas: que conduziam uma vida diferente das demais.

O mais santo de todos é Deus: Ele é completamente diferente de tudo que existe.

O que exige Deus do seu povo, quando lhe pede para ser santo? Israel entendeu que era viver isolado dos outros povos, por isso evitavam qualquer contato com aqueles que poderiam conduzir a idolatria. Para conservar essa ‘santidade’ desmedidamente as proibições: entrar na casa de estranhos, tomar refeições com eles e até mesmo apertar-lhe as mãos. Mas o livro do Levítico mostra um modo diferente de entender a santidade. Nada de separação física de outros homens, nada de observância de códigos e de prescrições. Para ser santo é suficiente levar uma vida diferente, uma vida que se concretize nas seguintes prescrições: “não odiar o irmão, renunciar ao rancor e à vingança, amar o próximo com a si mesmo”.

Esse é o ponto máximo que chegou a moral do AT. Todavia esse amor que se exige não é universal, é restrito aos membros do povo de Israel. Jesus levará esse amor até as últimas consequências. Ele mostrará que o ‘irmão’ que deve ser amado, não é tão somente aquele que pertence a própria etnia, mas são todos os homens, também o estranho, o pagão, o inimigo.