Campanha da Fraternidade 2022 – Fraternidade e Educação


“Fala com Sabedoria, ensina com Amor” (cf. Pr 31,26)

 

Siglas:

CF = Campanha da Fraternidade

DoCat = Doutrina Social da Igreja em Linguagem jovem.

 

Apresentação:

 

A Campanha da Fraternidade (CF) 2022 nos convida a refletir sobre a indispensável relação entre fraternidade e educação. Já tendo, por duas vezes, se debruçado sobre essa relação (1982 e 1998), a realidade de nossos dias fez com que o tema educação recebesse destaque, dentre os vários sugeridos e fosse escolhido para mais uma CF.

De fato, o mundo e nele o Brasil estão diante de um desafio: redescobrir caminhos para uma reconstrução que não é parcial, mas global; que não atinge somente alguns aspectos, mas deve chegar às raízes do modo como as pessoas e os povos compreendem e organizam a totalidade da vida.

Trata-se, portanto, de uma CF em forte linha de continuidade com os temas que vêm sendo propostos pelo menos desde 2018, quando éramos convidados a encontrar caminhos para a superação da violência. Esses caminhos passam por políticas públicas (CF 2019), fundadas na ética do cuidado (CF 2020), em profunda atitude de diálogo (CF 2021). Nada disso poderá, entretanto, ocorrer se não se considerar a importância da educação: educar-nos para o cuidado dialogal, nas relações interpessoais, e para o compromisso socioambiental; educarmo-nos para a redescoberta das motivações mais profundas ao próprio ato de educar.

Essa é a razão pela qual, em 2022, mais que abordar um ou outro aspecto específico da problemática educacional, a CF nos convoca a refletir sobre o fundamento do ato de educar. Esta opção não implica o distanciamento das questões mais concretas e urgentes no campo educacional. Há de fato inúmeros passos a serem dados, escolhas a serem feitas, com ratificação ou ajustamento de rumo. Cada uma dessa concretizações, porém, exige o discernimento dos motivos pelos quais são realizadas, fazendo, assim, emergir um CF que nos leva a alargar o horizonte de nossa compreensão a respeito da educação, entendida não apenas como ato escolar, como transmissão de conteúdos ou preparação técnica para o mundo do trabalho. Estes são aspectos importantes, porém não os únicos. A CF nos adverte que mais importante e urgente é a pergunta pelos motivos, pela abrangência e pelas metas de qualquer processo educativo.

Em face a tudo isso, a CF nos recorda que educar não é um ato isolado. É encontro no qual todos são educadores e educandos. É tarefa da própria pessoa, da família, da escola, da Igreja e de toda a sociedade. Afinal, como ensina o conhecido provérbio de origem africana, “é preciso uma aldeia para se educar uma criança”.

 

Introdução

 

Quaresma é tempo favorável para a conversão do coração. Converter-se é também sair do individualismo, romper com a indiferença, vivendo a solidariedade em diálogo e como compromisso de amor. Coração transformado pelos exercícios espirituais que nos conduzem à celebração da Páscoa de Jesus Cristo. Um convite à transformação interior que tem incidências concretas no cotidiano.

Desde 1964, a Igreja no Brasil promove a Campanha da Fraternidade como um dos modos de viver a espiritualidade quaresmal. Uma Campanha que contribui para uma mudança de vida profunda que nos leva, não somente a pedir a Deus perdão por nossos pecados, mas a unir forças na construção de uma sociedade que corresponda à mensagem do Evangelho (cf. Mc 1,15).

A CF tem como grande objetivo despertar a solidariedade dos fiéis em relação a um problema concreto que envolve a sociedade brasileira, buscando caminhos de solução à luz do Evangelho. A cada ano é escolhido um tema, que define a realidade concreta a ser transformada, e um lema, que explicita em que direção se busca a transformação. O Evangelho possui uma irrenunciável incidência social. ‘Deus está interessado no bem-estar completo do homem, e por isso também no desenvolvimento da comunidade na qual o homem participa de muitos modos’ (DoCat, n.26).

Em 2022, os bispos do Brasil nos fazem um convite de singular importância: à luz da fé, queremos refletir sobre a educação em nosso país, convictos de que ela é indispensável para a construção de um mundo mais justo e fraterno. Somos convidados a ver a realidade da educação em diversos âmbitos, iluminá-la com a Palavra de Deus, encontrando e redescobrindo meios eficazes que favoreçam processos mais adequados e criativos a fim de que ninguém seja excluído de um caminho educativo integral que humanize, promova a vida e estabeleça relações de proximidade, justiça e paz. A educação é um indispensável serviço à vida. Ela nos ajuda a crescer na vivência do amor, do cuidado e da fraternidade.

Em um tempo marcado pela pandemia da covid-19 e por diversos conflitos, distanciamentos e polarizações, é preciso reaprender a amar, a perdoar, a cuidar, a curar, a dialogar e a servir a todos. Educar é construir a verdadeira fraternidade alicerçada na justiça e na paz. Isto será possível à medida em que Cristo, que nos liberta do egoísmo, for tudo em todos (1Cor 15,22).

 

1. Discípulo da Palavra

 

O cartaz da Campanha desse ano nos remete à cena entre Jesus e a mulher adultera (Jo 8,1-11). Aqui o texto base faz uma longa e bela reflexão para situar-nos no estilo de Jesus, de conduzir à sabedoria do coração àqueles que condenavam a mulher, só a mulher. Jesus se curva, como os escribas se curvavam sobre os textos sagrados, e começa a escrever com o dedo no chão. É a única vez que a Bíblia apresenta Jesus escrevendo.

A Lei, a Torá, era para os judeus o que nós chamamos de educação. São Paulo diz que a Lei foi para ele um pedagogo, uma educadora (Gl 3,24-25). Naquele tempo, os pedagogos educavam principalmente através do castigo, da punição. Na história da mulher adúltera opõem-se duas pedagogias, duas formas de educar, a daqueles que se restringem ao que está escrito, sem levar em conta a pessoa e suas circunstâncias, e daqueles que olham para a pessoa com sabedoria e amor, como fez Jesus. O que está escrito é importante, mas a forma de ler o que está escrito e decisiva para avançar no caminho da vida.

Jesus educador, entra naquela realidade conflitiva. Enxerga criteriosamente o problema, escuta e sente o pavor daquela mulher e os argumentos dos seus justiceiros. Jesus não polemiza, não acirra ânimos, não pensa o problema de modo isolado. Antes, procura escutar em silêncio o que dizem. Depois, em diálogo, conduz pedagogicamente todas as partes envolvidas para que sintam e reflitam sobre as fragilidades humanas, às quais todos estão sujeitos. Quando todos aprendem a complexidade da própria situação em que estão envolvidos, as atitudes e a realidade se transformam.

Educação não é condicionamento ou adestramento. É conduzir e acompanhar a pessoa para sair do não saber, rumo à consciência de si mesma e do mundo em que vive. É tornar a pessoa consciente, para que se torne sempre mais sujeito de seus sentimentos, pensamentos e ações. Isto vale tanto para crianças como para adultos, uma vez que a própria vida se encarrega de nos trazer oportunidades de aprendizagens em qualquer etapa. Uma pessoa se torna sujeito na medida em que pode dialogar com outras, percebendo que é levada à sério, que é escutada e amada.

A Igreja sempre valorizou a ciência e o conhecimento, inclusive o conhecimento técnico e científico, muitas vezes atacado e menosprezado, por meio do qual participamos da obra da criação. No entanto, não se pode reduzir a educação apenas à transmissão de conhecimentos. A sociedade, muitas vezes violenta e injusta, necessita de algo a mais do que apenas o ensino que muitas vezes é oferecido com meros objetivos utilitários.

À luz da Palavra de Deus, a CF quer nos ajudar a compreender duas lições sobre o ato de educar: a primeira diz respeito ao valor da pessoa como princípio de educação. A segunda de refere ao ato de correção, que é conduzir ao caminho reto. Não é repressão, mas é orientar a pessoa no caminho de uma vida transformada, verdadeiramente convertida à luz da verdade, pois: ‘A paz anda de mãos dadas com a justiça, a justiça com o direito, e o direito com a verdade’ (Cardeal Laurent Monsengwo).

 

 

Objetivo Geral

 

 

Promover diálogos a partir da realidade educativa do Brasil, à luz da fé cristã, propondo caminhos em favor do humanismo integral e solidário.

 

Objetivos Específicos

 

1.      Analisar o contexto da educação na cultura atual, e seus desafios potencializados com a pandemia.

2.      Verificar o impacto das políticas públicas na educação.

3.      Identificar valores e referências da Palavra de Deus e da Tradição cristã em vista de uma educação humanizador na perspectiva do Reino de Deus. 

4.      Pensar o papel da família, da comunidade de fé e da sociedade no processo educativo, com a colaboração dos educadores e das instituições de ensino.

5.      Incentivar propostas educativas que, enraizadas no Evangelho, promovam a dignidade humana, a experiência do transcendente, a cultura do encontro e o cuidado coma casa comum.

6.      Estimular a organização do serviço pastoral junto a escolas, universidades, centro comunitários e outros espaços educativos, em especial das instituições católicas de ensino.

7.      Promover uma educação comprometida com novas formas de economia, de política e de progresso verdadeiramente a serviço da vida humana, em especial, dos mais pobres.     

 

 

2. Escutar

 

O que escutamos e como escutamos orienta o nosso fazer cotidiano e a própria sociedade: escutar é uma condição para nossas relações, para a compreensão do que se passa, para o diagnóstico dos caminhos que devemos tomar e, especialmente, escutar é uma condição para falar com sabedoria e ensinar amor. Escutar o outro, como Jesus nos demonstrou em toda sua pedagogia, é ponto de partida para acolher, compreender, problematizar e transformar a realidade.

É fundamental uma pedagogia da escuta, que rompa com o paradigma de pedagogias silenciadoras. O silêncio e escuta interiores, que encaminham àquela reflexão serena e as sabedorias compartilhadas, nada têm a ver com o silenciamento que oprime e aliena e que nem sempre estão ausentes no processo educacional.

A realidade também nos fala através dos acontecimentos, das tendências, tensões sociais, demonstrações de ações de solidariedade, enfim, através de seus avanços e recuos. Escutar a realidade que nos fala é recuperar a percepção dos sinais dos tempos. Escutar a realidade significa o esforço de compreender seus gritos e silêncios, seus excessos e ausências. A escuta, na esteira da pedagogia de Jesus, não orienta os ouvidos somente para os sons que nos interessam. É uma escuta integral, com o ouvido e com o coração, que buscam a inteireza da realidade com tudo o que ela pode trazer. E, a partir dessa escuta, perceber a vontade de Deus e os caminhos que podemos escolher.

Para escutar o ‘todo’ é necessário não se perder diante de ‘tudo’. Se a falta de informações, de notícias verdadeiras e falsas, de certezas sobre opiniões, constitui um desafio para o bem escutar, ou seja, para escutar o conteúdo essencial de um presente tão ruidoso. Um exemplo desse desafio nós vivemos durante a pandemia da covid-19. Um tempo exigente, de muitos acontecimentos simultâneos e de muito sofrimento. A pandemia e a forma que conseguimos reagir como sociedade é reveladora do que conseguimos e do que não conseguimos escutar da realidade de nós mesmos.

Da pandemia da covid-19 nos cabe tirar as lições e os compromissos para o presente e o futuro. Aprender lições com a vida é imperativo para todos os educadores: pais, professores, lideranças comunitárias e religiosas. Educar, antes de dar lições, é aprender com as lições cotidianas e com as crises. Precisamos aprender para passar pelas crises e para enfrentar suas futuras versões de forma mais qualificada. Se as crises são, de certa forma, uma constante na sociedade, o aprendizado também precisa ser. Aprender não é só uma capacidade humana, mas é condição da nossa própria humanidade. “A tribulação, a incerteza, o medo e a consciência dos próprios limites, que a pandemia despertou, fazem ressoar o apelo a repensar os nossos estilos de vida, as nossas relações, a organização das nossas sociedades e, sobretudo, o sentido da nossa existência” (Fratelli Tutti n. 33).

Aprendemos com mais facilidade sobre as coisas, mas não temos o mesmo desempenho para aprender sobre nós mesmos. Esse segundo aprendizado é mais exigente e necessita do reconhecimento de nossos traços culturais, das formas com que nos aproximamos e resolvemos os problemas em sociedade. Retomando o que foi vivido e, em especial, a forma que encontramos para solucionar os desafios colocados pela crise, podemos reconhecer um novo aprendizado, que aponta algumas tendências da sociedade. “Se tudo está interligado, é difícil pensar que este desastre mundial não tenha a ver com a nossa maneira de encarar a realidade’ (Fratelli Tutti n. 34). Não nos esqueçamos das lições da história, mestra da vida.

Uma tendência deve ser intensificada como efeito de tudo que vivemos nos últimos dois anos: a necessidade de retomar e reconstruir projetos. Essa intensificação é percebida em cada um de nós, nas famílias, nos espaços escolares, nas organizações empresariais e no discurso político. O tema da reconstrução é sempre recorrente em momentos de superação das grandes crises. Neste momento histórico, a retomada dos projetos de vida está acompanhada por discursos sobre a necessidade de redescobrir o propósito de vida, redefinir metas e empreender soluções.

Como nos alerta o Papa Francisco: “Hoje, um projeto com grandes objetivos para o desenvolvimento de toda a humanidade soa como como um delírio. (...) Cuidar do mundo que nos rodeia e sustenta significa cuidar de nós mesmos. Mas precisamos nos construir com um ‘nós’ que habita a casa comum” (Fratelli Tutti n. 16-17). É necessário educar para reverter essa tendência de esvaziamento do coletivo e da crise do compromisso comunitário. A ilusão do individualismo se fortalece em uma distorção da noção de individualidade e de uma ilusão com vários projetos coletivos, em especial no campo das políticas públicas e no exercício do nosso modelo de representação política. Apesar de compreensível, não é o melhor caminho trocar uma desilusão do coletivo por uma nova ilusão individualista.

“O individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais irmãos. A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo melhor para toda a humanidade. Nem pode preservar-nos dos tantos males, que se tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus mais difícil de vencer. Ilude. Faz-nos crer que tudo se reduz a deixar a rédea solta às próprias ambições, como se, acumulando ambições e seguranças individuais, pudéssemos construir o bem comum” (Fratelli Tutti n. 105).

Viver, em qualquer tempo histórico, é também conviver com o imprevisível e com as ambiguidades da vida. Uma postura esperançosa na capacidade humana de aprender com a vida e transformá-la não é uma postura que recusa a ambiguidade da experiência humana, seus desafios e contradições, mas que, diante dessa ambiguidade, reafirma a esperança em aprender, construir e reconstruir o melhor possível: recolher da realidade os sinais de Deus e nos orientar na caminhada, não buscando rotas de fuga da realidade para evitar suas contradições, mas mergulhando nessas mesmas contradições e buscando reconciliar o nosso passo na caminhada com o projeto de Deus que nos inspira. Reconciliação essa que é um exercício tão constante como o próprio ato de caminhar.

 

- Formação humana e papel da educação.

 

A formação humana integral nos conduz a refletir sobre as diversas formas de educar e de construir as comunidades humanas, as sociedades e as civilizações, tecidas universalmente pelas relações pessoais e coletivas. A educação, em sentido amplo, abrange pertencimento e a participação dos sujeitos no mundo, de modo integral e solidário.

Nessa direção, a educação para a formação integral parte do reconhecimento mútuo entre as realidades sociais, culturais, econômicas, nas quais cada pessoa é levada a ampliar suas competências críticas em relação às suas próprias condições reais. Por essa razão, precisam ser pensadas novas formas de educar não baseadas em uma racionalidade técnico-utilitária, mas sim, em um reconhecimento básico: o ato educativo pressupõe ações amplas e complexas que demandam um reconhecimento do lugar que a pessoa ocupa na sociedade em que está inserida, tornando-se um agente que contribua com o desenvolvimento de uma nova cultura do acolhimento.

O humanismo, o tecnicismo, a solidariedade, o egoísmo e tantas outras características da sociedade são frutos, também, de um tipo predominante de educação, de uma determinada seleção curricular e metodológica. Dessa forma, as nossas opções na educação, a partir de seus vários contextos educativos, são aperitivos daquilo que viveremos em sociedade.

Todos esses elementos até aqui sinalizados são alguns exemplos de um currículo do nosso tempo. Não devemos percebê-lo como algo que deve ser transformado somente em conteúdo escolar, provas e testes, mas em um conteúdo de vida. Um conteúdo que deve ser acolhido em todos os nossos contextos educativos: família, Igreja, organizações sociais, na Educação Básica, Educação Superior, entre outros. Cada contexto educativo possui sua particularidade, seus desafios e sua contribuição potencial para construção de uma sociedade mais fraterna.

Os pais são os primeiros, mas não os únicos, educadores de seus filhos. Além dos pais e da família, uma aldeia inteira tem a capacidade de educar. Entretanto, no século XXI, essa aldeia é formada por uma imensa rede social, que tem abrangência global e plasma um novo jeito de viver. Há espaços sociais que historicamente se organizaram e que são importantes lugares formativos: igreja, comunidades, associações, onde as pessoas se organizam, exercem liderança, atuam pastoralmente, crescem espiritual e humanamente, celebram sua vida e aprofundam a sua fé. Evidentemente, pode haver ambiguidades e contradições em todas as organizações e espaços sociais, entretanto, a origem, a atribuição e a finalidade de cada um dos espaços sociais visam educar as pessoas para a vida em sociedade.

As artes e a literatura também são educativas, pois ajudam a interpretar o mundo pela ótica estética. O teatro, a música, a dança, a pintura, a escultura, uma boa leitura e algumas das dimensões da arquitetura, do design, da publicidade, possuem uma linguagem singular, que eleva o espírito humano e o projeto civilizatório. Uma sociedade que se fecha em um projeto educativo apenas técnico, pragmático e utilitário, empobrece o horizonte existencial das pessoas e anula a sua capacidade criativa.

Em meados do século XX, os Meios de Comunicação Social passaram a exercer enorme influência na vida pública e no modo das pessoas enxergarem e sentirem a vida. Dentre tais meios, a partir da década de 1970, a televisão ocupou um lugar central nas casas das famílias, conquistando lugar de destaque na sala e, depois, foi instalada mesmo nos quartos. Hoje, a qualidade técnica e a instalação de televisores se aperfeiçoou, diversificou e expandiu ainda mais. Mais que a influência da televisão, embora a ela integrada, a geração do novo milênio foi impactada pela internet, em todas as suas faixas etárias. Introduziram-se um novo jeito virtual de viver, plasmou-se um novo ritmo de tempo, uma nova percepção de distância e um novo modo de viver as relações humanas. Das crianças aos idosos, muitos ficam ligados permanentemente on-line. Muitos novos desafios, sobretudo éticos, políticos, pedagógicos e psicoculturais, são vividos por essas novas realidades virtuais emergentes.

Também nestes espaços virtuais pode ser exercida uma prática educativa que orienta o intercâmbio fecundo, a gratuidade que acolhe, a valorização do conteúdo com sabor local, a abertura ao horizonte universal, a superação do narcisismo bairrista, a inclusão dos mais frágeis e dos pobres. São espaços para o diálogo social, para a troca de opiniões exaltadas e os monólogos agressivos que avançam em paralelo. São possibilidades para o encontro e a amizade social, sustentados pela disposição de abertura à verdade, trabalho pela paz, perdão que supera o ímpeto de vingança, memória que mantém a lembrança dos erros e vigilância para não repetir novas atrocidades na história.

Eis, aqui, um belo itinerário para os nossos projetos educativos e um conteúdo programático para todos que educam. E, para isso, a instituição escolar tem um papel insubstituível. Ela não substitui o contexto educativo da família, nem é o único espaço social onde se faz educação. Mas é um lugar onde, de modo sistemático, articulado e especializado, se faz a educação formal e se capacita para a cidadania, o trabalho e as complexas relações sociais. Nesse contexto, não há dúvidas de que o professor é o profissional por excelência da educação e a escola um indispensável ambiente de aprendizado. Por fim, tanto a educação formal e informal, presencial e virtual, devem promover a liberdade da pessoa humana. Educar é humanizar. A educação é um ato de amor e esperança no ser humano.

 

- Educação formal no Brasil: um projeto inconcluso.

 

A educação formal no Brasil possui avanços significativos nas últimas décadas, mas ainda enfrenta desafios naturais. Organizar um sistema educacional considerando a extensão geográfica e a diversidade regional do nosso país é um dos grandes desafios. Outro desafio é a superação da dívida histórica de escolaridade da população, em especial, dos setores mais populares da sociedade. Esse é um dever de casa que a educação brasileira ainda não conseguiu concluir.

Para além do desafio do acesso, outro aspecto que marca o nosso projeto inconcluso de escolarização e a dívida histórica do país é a qualidade da educação ofertada. É importante destacar que acesso sem qualidade é um simulacro de acesso. Os avanços vividos nas últimas décadas na educação brasileira são visíveis, porém insuficientes e vagarosos, em especial, para os segmentos da população que esperam da educação de seus filhos uma oportunidade singular de melhoria de vida e justiça social.    

 

- A Educação Básica (O texto faz um levantamento da Educação Básica segundo dados de 2020).

 

É fundamental destacar que a educação pública no Brasil é responsável pela maioria das matrículas na Educação Básica, o que torna mais premente os avanços de acesso, permanência e qualidade. Uma educação pública inclusiva e de qualidade é condição da justiça social que ainda carecemos no Brasil. Quando não priorizamos a educação pública no Brasil, construímos uma dupla defasagem: não enfrentamos uma dívida social histórica e prolongamos essa situação injusta para as próximas gerações.

A Educação Infantil, como primeira etapa da Educação Básica, ocupa grande relevância no processo de desenvolvimento integral da criança em seu aspecto físico, psicológico, intelectual e social. A educação na primeira infância é de suma importância, pois, possibilita que a criança socialize e interaja desenvolvendo suas habilidades.

O levantamento das principais iniciativas das redes municipais de escolas são exemplos do que possivelmente aconteceu na rede estadual, federal e privada. Infelizmente, a desigualdade de condições e de construção das respostas também ficaram evidentes, ampliando as desigualdades já vividas anteriormente no sistema educacional e na sociedade brasileira como um todo. Os efeitos adversos da pandemia na educação, como dificuldade de aprendizagem, evasão, exposição das crianças em situação de vulnerabilidade, ainda serão mais bem compreendidos no futuro próximo. O fundamental é que as respostas que serão construídas não reproduzam as desigualdades já existentes.

Outro aspecto que merece destaque é o processo de implementação de reformas educacionais importantes no Brasil, como a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a reforma do Ensono Médio. Elas estavam sendo discutidas e implementadas em um contexto de polarização política e instabilidade institucional nos últimos anos e foram afetas, também, pela pandemia da covid-19. A situação política e a pandemia não diminuem a necessidade das mudanças educacionais, pelo contrário, a forma que reagimos na educação diante das crises é um sinal de necessidade das mudanças. Essas mudanças na educação são necessárias e urgentes e por isso precisam ser feitas com zelo e não somente para o atendimento legal ou de disputas do calendário eleitoral. Porque são urgentes precisam ser bem-feitas, caso contrário viveremos em uma sucessão de reformas sem resultados efetivos.

Há mais de 50 anos, a Igreja no Brasil se esforça para favorecer e criar meios de superação do analfabetismo. Belo exemplo foram as escolas radiofônicas, o nascimento do Movimento de Educação de Base (MEB), que unia instrumento de comunicação, prática regional e valorização da pessoa como protagonista no processo de aprendizagem. Esta e tantas outras iniciativas demonstram o empenho da Igreja e seu compromisso com a educação.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, havia 11,3 milhões de pessoas analfabetas com 15 anos ou mais de idade. Se todos residissem na mesma cidade, este lugar só seria menos populoso que São Paulo. Não obstante os esforços da Igreja, da sociedade civil e de iniciativas do Estado Brasileiro, o analfabetismo ainda é um desafio. Segundo os dados da Pesquisa Nacional por amostras de Domicílios Contínua (PNAD), os territórios das regiões Norte e Nordeste concentram a maior taxa de analfabetos, 7,6% e 13% respectivamente. Para mudar este cenário é necessário priorizar caminhos que promovam uma educação pública de qualidade.

 

- As Escolas Católicas de Educação Básica.

 

 

As Escolas Católicas, enquanto comunidade educativa, são lugares de encontro, da educação integral da pessoa humana por meio do projeto pedagógico que tem seu fundamento em Cristo, orientado para realizar uma síntese entre fé, cultura e vida. Neste sentido, destaca-se a contribuição da Educação Católica, por meio da excelência acadêmica, a partir das práticas pedagógico-pastorais, à luz de uma ecoteologia, no processo de construção de uma sociedade sustentável e respeitosa dos direitos humanos conduzindo a transição em direção a sistemas verdadeiramente inclusivos que protejam a nossa casa comum.

As redes de ensino católicas têm contribuído com a formação contínua dos educadores apoiando-os no seu desenvolvimento pessoal, cognitivo, emocional e profissional, que são alguns dos objetivos de uma educação cristã, integral, integradora e transformadora. Educadores estes que levam os conhecimentos adquiridos tanto para o campo de suas ações pessoais como para sua prática docente, seja nas instituições públicas ou privadas.

 

- A Educação Superior.

 

A Educação Superior é decisiva para formação de pessoas para o mercado de trabalho para o desenvolvimento das sociedades. É uma grande conquista das civilizações e um dos lugares mais importantes para o desenvolvimento humano, cultural, científico e tecnológico. Por isso, com muita razão, os pais sonham que os seus filhos possam concluir um curso superior e as crianças, desde cedo, quando dizem que sonham fazer na vida, já sinalizam que precisarão se capacitar em uma instituição universitária.

De fato, a Educação Superior é um dos principais caminhos para que as pessoas se capacitem à liderança social. Inclusive em nossas comunidades, paróquias e dioceses, os próprios diáconos, padres e bispos, para exercerem esses ministérios na Igreja, primeiro estudaram durante muitos anos em cursos de graduação e alguns deles também em cursos de mestrado e doutorado.

Dados do Censo de Educação Superior (divulgados em outubro de 2020) indicam que no ano de 2019 havia 8.604.526 estudantes matriculados em cursos de graduação, no Brasil. Parece bastante, mas isso significa que apenas 21,4% dos jovens, com idade de 18 a 24 anos, estão matriculados em um curso superior.

 

- Professores e gestores em sua missão de educadores.

 

Em todos os tempos, os educadores tiveram desafios inerentes ao contexto social, político e econômico, dentre outros. Na real atualidade, não é diferente. Nesta era da complexidade, levantam-se demandas nos variados âmbitos que abrangem tanto a organização educativa em suas opções pedagógicas quanto a pessoa e a profissão do professor.

Aos gestores, além das questões administrativas, financeiras e de toda ordem, importa ter claro um modelo de educação que priorize o encorajamento ao aprendizado e a construção de conhecimento significativos, que permitam a todos os atores do processo educativo abrirem-se à aprendizagem como tarefa que nos acompanha pela vida afora.

É preciso uma séria reflexão sobre as questões relativas à educação de qualidade social, a fim de ampliar a concepção focada apenas na escalada social individual e descomprometida com as questões humanitárias e com o futuro da sociedade onde vivem as pessoas. Urge aos responsáveis pelos programas educativos pensar: que metodologias, práticas avaliativas e opções pedagógicas e de constituição curricular permitiriam processos mais equânimes e inclusivos em todos os âmbitos da educação formal? A precariedade a que estão sujeitas algumas instituições públicas de ensino, com enfrentamento de dificuldades que perpassam o uso inadequado de investimentos em pesquisas, extensão, até a falta de recursos para o ensino, não pode ser ignorada.

Aos professores, especialmente, protagonistas por excelência do ato educativo, e a quem estão diretamente relacionadas as questões da metodologia do ensino, da aprendizagem dos estudantes, de sua avaliação, impõem-se repensar o ato educativo para além da já tradicional lógica das perguntas e respostas pré-elaboradas e, muitas vezes, distantes da realidade. Criar formas de interação e aprendizagem, a fim de que o processo de ensino-aprendizagem não seja eficiente, mas sobretudo eficaz, auxiliando para que o aprendiz possa apropriar-se dos conhecimentos, em espiral que contempla teoria e prática.

O tema da atualização e do uso de tecnologias e educacionais é uma constante na educação. A escola é chamada a rever constantemente os meios que utiliza para facilitar os processos de aprendizagem. Nos últimos anos, as tecnologias digitais ganharam grande relevância, que foi intensificada durante a pandemia da covid-19. É importante considerar que o uso das tecnologias digitais possui um grande potencial. As tecnologias podem muito, mas não podem tudo. É preciso evitar a ilusão de uma solução mágica para todos os desafios da educação. É fundamental também perceber outros dois aspectos: as tecnologias digitais quando ofertadas de maneira desigual reforçam e qualificam a exclusão que se espera superar. O segundo aspecto é que elas não devem ser percebidas como artifício para diminuição do custo professor no processo educacional. A educação pode ser facilitada por programas e plataformas, mas a sua autoria deve ser centrada na ação humana.

A proposta do Papa Francisco de um Pacto Educativo Global implica também, em nível diminuto, que cada Instituição Educativa empreenda processos de diálogo e aproximação com as famílias, propondo uma aliança em torno de uma educação para a verdade, a solidariedade, o respeito às diferenças e a paz.

Pensar a educação do século XXI é empenhar-se para transformar as Instituições Educativas em comunidades aprendentes. Somente o compartilhamento de saberes vai nos permitir alcançar tal meta. Trabalhar por uma educação que promova a vida acima de qualquer outro valor, ajudando a resgatar a dignidade de cada pessoa humana, em um exercício permanente de fraternidade e solidariedade contribuirá para o surgimento e desenvolvimento de uma nova humanidade.

 

- Ensino Religioso

 

O Acordo Brasil-Santa Sé (Decreto n. 7.107, art. 11, S 1º) assegura o Ensino Religioso Católico e de outras confissões religiosas, portanto, podendo haver um modelo não confessional e outro confessional, este segundo os referenciais teológicos da sua tradição religiosa, assegurando a liberdade religiosa.

O ensino religioso é essencial no componente curricular, como educação para a construção da paz social, do diálogo respeitoso com a diversidade cultural e também para valores humanos e espirituais, na percepção da busca humana à transcendência.

O ensino religioso ainda possibilita que cada pessoa compreenda e descubra que o ser humano possui direitos fundamentais: a vida, a religião, o saber, a apreciação estética, o trabalho, a amizade, a propriedade privada, entre outros. Há uma responsabilidade de serviço ao próximo e senso de comunidade que são fundamentais para a concretização da paz social, no diálogo respeitoso com a diversidade cultural e para valores humanos e espirituais na percepção da busca à transcendência. Como resume Santa Catarina de Sena: ‘se fores aquilo que Deus quer, colocareis fogo no mundo’.

 

- Outros contextos educativos.

 

A Constituição Federal, em seu artigo 205, ressalta que a educação é direito de todos e dever do Estado e da família. Será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Ela é um direito subjetivo, inalienável e que deve ser garantido a todos os indivíduos. Entretanto, a educação existe mesmo onde não há escolas, extrapolando os muros das instituições de ensino. A educação popular, social e comunitária muito tem contribuído, em consonância com as instituições de ensino, ao longo da história, para a potencialização das pessoas e comunidades, como sujeitos de direitos e deveres. Ela se dá em uma sociedade democrática, que diariamente luta por políticas públicas estruturais e de Nação que acabam, pela sua existência ou ineficácia, em várias situações, ampliando a desigualdade e a violência contra as infâncias, adolescências e juventudes.

O contexto político-econômico-social que vivemos afetou a sociedade brasileira, em seus diversos campos, ampliando assim, as lacunas referentes aos direitos de momentos de aprendizagem dos estudantes na Educação Básica. No caso das instituições de ensino formal houve o aumento da evasão e do abandono escolar, perdas significativas de aprendizagem. Ocorreu também a ampliação da desigualdade de acesso e permanência às oportunidades educacionais dos estudantes, o aumento do número de reprovações, além do adoecimento emocional dos profissionais da educação e dos estudantes. Quem mais tem sido impactado nos territórios da educação, em escolas e nos espaços educacionais não formais, foram e são os mais vulneráveis.

É preciso fortalecer as redes de apoio aos territórios de vulnerabilidade para que essas populações tenham as condições necessárias para sobreviver com dignidade e garantir seus direitos sociais, principalmente nas favelas, periferias, quilombos e nas comunidades indígenas, tendo respeitada sua identidade.

É necessária uma abertura e sensibilidade no que se refere à realidade das pessoas que se encontram em uma situação de exclusão e tratamento discriminatório. Seja na educação formal, como também na não formal, a educação precisa ter marcas de testemunho profético, sendo ousada e aberta à utopia. Dessa forma, afeta, potencializa e transforma os indivíduos como atores-sujeitos sociais; uma educação que relaciona unidade e pluralidade. Atenta e disponível aos mais frágeis, que transmita conteúdos, hábitos, valores e virtudes, a partir da relação na proposição do encontro. Portanto, uma educação para o cuidado com a casa comum, que valoriza a dimensão lúdica, o diálogo e o respeito, que acompanha e ensina o verdadeiro, o belo e o bom, em todos os contextos sociais.

Para uma prática dialógica educativa, é necessário ainda promover uma vivência participativa e cristã, de abertura ao mundo e aos outros, pois, ‘o sujeito que se abre ao mundo e aos diferentes saberes inaugura, com seu gesto, a relação dialógica que se confirma como inquietação e curiosidade, como inclusão em permanente movimento na história. 

 

3. Discernir

 

O exercício da escuta conduz à necessária tomada de posição da parte de quem escutou. Entre a escuta e a ação, urge a prática do discernimento, qual iluminação à luz dos critérios da Fé e da Tradição Cristãs. E o discernimento se pratica com outra escuta, dessa vez, da Palavra de Deus, como passo fundamental para julgar evangelicamente os desafios do tempo presente e apontar as proposições para o novo. Assim, a referência primeira é Jesus. Ao escutar as acusações contra a mulher pecadora (Jo 8,1-11), o Mestre toma a palavra e faz valer a misericórdia e o perdão como caminho novo para aquela mulher continuar a viver resgatada na força do amor, da compreensão e da Boa-Nova do Reino. Este caminho novo da misericórdia não exclui, porém, a correção: ‘vai e não peques mais’.

Todos os dias as pessoas são chamadas a tomar pequenas decisões. Essas são geralmente adotadas à luz de valores assimilados desde a educação familiar e aperfeiçoados na vida adulta. Mas é, sobretudo nas decisões que mais empenham o sentido da vida e da dignidade humana, naquelas que comprometem o futuro de si mesmo e dos outros, nas que envolvem a justiça e a liberdade, que a pessoa necessita exercitar atentamente o discernimento. Para o cristão, essas decisões requerem a luz da fé. “É verdade que o discernimento espiritual não exclui as contribuições de sabedorias humanas, existenciais, psicológicas, sociológicas ou morais, mas transcende-as. [...] Não está em jogo apenas um bem-estar temporal, nem a satisfação de realizar algo de útil, nem mesmo o desejo de ter a consciência tranquila. Está em jogo o sentido da minha vida diante do Pai que me conhece e ama, aquele sentido verdadeiro para o qual posso orientar a minha existência e que ninguém conhece melhor que Ele” (Papa Francisco).

Após apresentar uma visão panorâmica da realidade educativa em nosso país, com seus desafios potencializados pela pandemia e seus impactos nas políticas públicas para a educação, é hora de discernir as principais referências da educação na perspectiva cristã, ou seja, uma educação para o humanismo solidário. À luz da Palavra de Deus, da Tradição e do Magistério da Igreja e da experiência eclesial bimilenar, muito mais do que julgar os diferentes modelos educativos, urge recuperar os princípios e as características da educação na perspectiva da fé cristã.

Seguir Jesus pelo caminho do discipulado consiste em aprender dele como se deve construir novas relações rompidas, construir novas relações fraternas fundamentadas em atitudes de amor ao próximo e de perdão que Ele mesmo teve ao percorrer o caminho de seu ministério. O desejo de restaurar as relações rompidas deve nascer do coração humilde e sincero do discípulo que se dispõe continuamente a aprender com Ele como agir e como orar verdadeiramente.

A Igreja, progressivamente, utilizou das fontes e dos instrumentos da cultura para aprofundar a Revelação e promover um diálogo construtivo com o mundo. Os discípulos missionários educadores, no decorrer dos séculos, encarnam a Boa-Nova do Reino na aspiração de educar e formar as novas gerações para verdadeiramente assumirem seu protagonismo no mundo. À luz da fé em Jesus, mestre e educador, a missão educativa dos discípulos missionários tem sido promover a fraternidade a partir da força transformadora do Evangelho. Esse jeito de ensinar reconhece a todos como filhos de Deus e leva ao amor e ao serviço a todos, especialmente os mais pobres.

 

- Horizontes próprios da educação cristã.

 

Toda proposta educativa tem subjacente uma concepção do ser humano, da cultura, da sociedade e da história. Pode-se dizer que a cada pedagogia corresponde uma antropologia. A educação que parte de uma antropologia cristã também considera o fim último da pessoa: conhecer e amar a Deus no tempo e na eternidade, e os irmãos e irmãs por meio da fraternidade. A educação não é só integral no sentido temporal, mas eterno. Ela deve conduzir a pessoa a desenvolver suas capacidades em vista do amor a Deus e ao próximo (Mt 23,37-39), sem descuidar da promoção da vida e da dignidade humana, no horizonte da salvação.

Ao considerar a educação cristã, parte-se de uma antropologia cristã. Por isso, a educação cristã parte da visão positiva e integral do ser humano como ser responsável por si mesmo e pelo mundo, como ser livre, aberto à transcendência e culturalmente situado, marcado pela contradição do pecado, mas orientado a vencê-lo e, eticamente conduzido para a justiça e a fraternidade.

A pessoa humana é um ser corporal e espiritual. “O corpo do homem participa da dignidade da ‘imagem de Deus’: ele é corpo humano precisamente porque é animado pela alma espiritual. É a pessoa humana inteira que está destinada a tornar-se, no Corpo de Cristo, o Templo do Espírito” (Catecismo n. 364). Por essas dimensões, a pessoa está ligada a este mundo por sua corporeidade e, ao mesmo tempo, aberta à transcendência, porque é amada por Deus criador. Cada pessoa é única e irrepetível. Essa singularidade aponta para a riqueza da subjetividade de cada pessoa e se opõe a qualquer tentativa de reduzi-la a modelos ou tipos ideológicos. A pessoa humana não pode ser instrumentalizada por nenhum motivo. Ferida pelo pecado, a natureza humana sofre por não fazer o bem que deseja e por fazer o mal que não deseja (Rm 7,19). Libertada em Cristo, crê na superabundância da graça (Rm 5,20).

Decorrência da dignidade, da unidade e da igualdade de todas as pessoas é o ordenamento das ações humanas em vista do bem comum, princípio para a vivência da fraternidade e condição para a vida em sociedade. É verdade, também iluminada pela fé, que há uma dimensão política da existência humana ‘que implica uma atenção constante ao bem comum e a preocupação pelo desenvolvimento humano integral’ (Fratelli Tutti n. 276). E, mais recentemente, insiste-se na dimensão ecológica da vida humana, pois ‘viver a vocação de guardiões da obra de Deus não é algo opcional nem um aspecto secundário da experiência cristã, mas parte essencial de uma existência virtuosa’ (Laudato Si n. 217).

A Igreja considera ‘a missão educativa da família cristã como um verdadeiro ministério, através do qual é transmitido e irradiado o Evangelho, ao ponto de a mesma vida da família se tornar itinerário de fé, em certo modo, iniciação cristã e escola para seguir a Cristo. Na família consciente de tal dom, como escreveu Paulo VI, ‘todos os membros evangelizam e são evangelizados’.

Mas também se pode esquecer do papel da família no processo educativo para a construção de uma sociedade melhor. É na família que se projeta a virtude de perseverar nos bons propósitos em vista do cuidado das futuras gerações: “A promoção de uma autêntica e madura comunhão de pessoas na família torna-se a primeira e insubstituível escola de sociabilidade, exemplo e estímulo para as mais amplas relações comunitárias na mira do respeito, da justiça, do diálogo, do amor’ (Familiaris Consortio n. 43).

Como direito universal, é importante que haja diversidade de ofertas, entre as quais a educação cristã, de forma que, servindo-se de seus direitos, as famílias cristãs possam escolher instituições e processos educativos que esteja de acordo com seus princípios e crenças. Assim, é necessária a garantia da coexistência de diferentes propostas educativas, entre as quais a cristã, de forma a garantir o direito das famílias de optarem por uma educação em continuidade com seus valores, pois os filhos não podem ser obrigados a frequentar aulas que estejam em desacordo com a fé.

 

- Educar para o diálogo.

 

Nenhuma pedagogia que se diga cristã poderá abster-se de operar o diálogo em todos os níveis e com todos os sujeitos. Desde a educação no âmbito familiar, nas instituições formais de ensino, nas organizações civis e do Estado, os cristãos hão de primar pelo testemunho do diálogo. Deverão ser reconhecidos como homens e mulheres que falam com sabedoria e ensinam com amor (Pr 31,26).

Diálogo não significa concordar com tudo. Ele se estabelece com quem está aberto a essa experiência enquanto compromisso de amor. Isso implica não negociar o que é inegociável nas convicções de cada um e de cada grupo. Uma educação que provoca a cultura do diálogo é capaz de identificar e nomear lugares, situações e ambientes onde a intolerância, a violência e o ódio são disseminados e, assim, refletir suas causas e buscar soluções para sua superação. “Em uma sociedade pluralista, o diálogo é o caminho mais adequado para reconhecer o que sempre deve ser afirmado e respeitado” (Fratelli Tutti n. 211). A escola e a universidade, por suas características plurais, são um campo fértil para verdadeiras experiências do encontro, do diálogo, da reflexão e do olhar atento sobre a realidade.  

 

4. Agir

 

O exercício da escuta conduz à necessária tomada de posição da parte de quem escutou. Entre a escuta e a ação, urge a prática do discernimento, qual iluminação à luz de critérios da fé e da tradição. E o discernimento se pratica com outra escuta, dessa vez, da Palavra de Deus, como passo fundamental para julgar evangelicamente os desafios do tempo presente e apontar propostas que inspiram o nosso agir.

“Vai, e de agora em diante, não peques mais” (Jo 8,11). Foram essas as palavras de Jesus dirigidas à mulher surpreendida em flagrante adultério. Ela não foi apedrejada, mesmo tendo pecado. O Divino Mestre educou a todos os que estavam envolvidos naquela cena e ainda hoje nos envia sua Palavra a fim de que, educados por ela, livres do pecado, sejamos capazes de falar com sabedoria e ensinar com amor. Porém, ressalte-se, assim como afirmou o Papa Francisco, não há misericórdia sem correção. De fato, Jesus disse à adultera: ‘vá e não peques mais’. Aqui entra a questão da disciplina no processo educacional. Disciplina como abertura e colaboração pessoal no processo de aprendizado.

O testemunho da Igreja missionária é o princípio que qualifica o anúncio do Evangelho e a torna capaz de propor aos homens e mulheres de boa vontade um novo aprendizado: educar é um ato de esperança no ser humano. É contribuir para que cada pessoa, cada discípulo missionário de Jesus Cristo ofereça o melhor de si a Deus, ao próximo, à Igreja e à sociedade. Educar com sabedoria e amor é estimular o cuidado pela vida, desde a concepção, passando pelo fim natural, até a eternidade. Convictos do poder transformador da educação pedimos: Senhor, ajudai-nos a criar um mundo novo!

Uma mudança de época requer um caminho educativo. Criatividade e responsabilidade, a pessoa no centro com o olhar voltado para o seu semelhante. Uma educação que gere pessoas disponíveis para o serviço da comunidade. Assim, as credenciais para um novo aprendizado passam pelo testemunho de vida, pela alegria de ser missionários também a serviço de uma educação integral, promotores da fraternidade comprometidos com os mais pobres. Um novo aprendizado nada mais é do que promover uma educação humanizada.

Uma educação humanizada não pode limitar-se a fornecer um serviço de formação, mas também cuidar dos seus resultados no horizonte das capacidades pessoais, morais e sociais dos participantes no processo educativo. Não pede simplesmente ao professor para ensinar e ao aluno para aprender, mas exorta cada um a viver, estudar e agir de acordo com as premissas do humanismo solidário. Não prevê espaços de divisão e contraposição, mas, pelo contrário, oferece lugares de encontro e debate para realizar projetos educativos válidos. Trata-se de uma educação, ao mesmo tempo sólida e aberta, que derruba os muros da exclusividade, promovendo a riqueza e a diversidade dos talentos individuais e expandindo o perímetro da própria sala de aula e cada âmbito da experiência social em que a educação pode gerar solidariedade, partilha e comunhão.

 

- Uma nova realidade para a educação? O Pacto Educativo Global.

 

“A educação é obra necessariamente social e não singular” (Pio X). Será que é possível uma nova realidade, um novo horizonte para a educação? Não há dúvidas de que o atual cenário precisa mudar em diversos âmbitos e aspectos. A cada dia ficamos surpresos com os dados que traduzem partes dos impactos da pandemia na educação. Um modo de iniciar um novo tempo na educação é assumirmos as propostas do Papa Francisco que nos convoca a unir forças em vista de um Pacto Educativo Global.

No atual contexto profundamente marcado por contrastes sociais e sem uma visão comum, é urgente uma mudança de rumo que só será possível através de uma educação integral e inclusiva, capaz de uma escuta paciente e de um diálogo construtivo no qual a unidade supere o conflito. “A educação será ineficaz e os esforços estéreis se não se preocupar também por difundir um novo modelo relativo ao ser humano, à vida, à sociedade e à relação com a natureza” (Laudato Sí).

Se para educar uma criança é preciso uma aldeia inteira, nesta mesma aldeia existem atores fundamentais neste processo: a família, a Igreja, a escola, e a sociedade. É preciso que cada um deste atores atuem com a coragem ao colocar a pessoa no centro do processo educativo. Todos precisam cooperar envolvendo-se diretamente tanto nos debates como também em iniciativas criativas que ajudem os governantes a priorizar a educação integral em nosso país. Tal empreendimento exige repensar a ação educativa formal e informal, e quais escolhas estão sendo feitas, qual modelo de sociedade e de pessoa humana estamos formando, pois, educar é servir e o verdadeiro serviço da educação é a educação a serviço.

Uma “educação frutífera não depende primariamente da preparação do professor nem das habilidades dos alunos, mas da qualidade do relacionamento que é estabelecido entre eles. Muitos estudiosos da educação enfatizaram que não é o professor a educar o aluno numa transmissão unidirecional, nem é o aluno a construir o seu próprio conhecimento, mas é o relacionamento deles que os educa mutuamente num intercâmbio dialógico que os pressupõe e, ao mesmo tempo, os supera. Esse é, propriamente, o sentido de colocar no centro a pessoa que é relação” (Pacto Educativo Global, p. 17).

 

- Educar é iniciar processos.

 

O que podemos aprender com a pandemia para iniciar novos processos que contribuam para o nascimento de uma nova realidade educacional? A descoberta de nossa vulnerabilidade pode ser a ocasião para nascer uma nova força de cooperação. Tudo está interligado. Não existe solução fácil para problemas difíceis. Priorizar a educação supõe empenho concreto que vai desde a família até a elaboração de políticas públicas. Iniciar processos a partir de pequenas práticas e perseveranças nos propósitos estabelecidos.

A humanização de uma sociedade passa também pelo modo de lidar com a fragilidade, a morte e o luto. A pandemia nos recordou que não podemos perder de vista essa realidade. Olhar a educação à luz da fragilidade e da morte tão próxima significa perguntar o que é que estamos fazendo com a vida, a morte e o luto. Somos uma sociedade que educa considerando a realidade da morte? É preciso viver como quem sabe que um dia também passará pela experiência da morte. Educar para lidar com a morte implica o modo de perceber a vida e como temos vivido.

A pandemia também nos colocou de volta ao ambiente familiar de forma inesperada. Um reencontro como Igreja doméstica. Nunca estivemos tanto tempo em casa. Esse ambiente possibilita a redescoberta da disciplina, da ajuda mútua, da corresponsabilidade, dos limites e dos hábitos, da convivência e da capacidade de cultivar um olhar atento para situações em que o ato de educar precisa acontecer de imediato. A convivência comunitária e familiar é um valor na missão de educar que não podemos perder.

Em muitos casos, as redes sociais tornaram-se como que uma caixa amplificada que reverbera muitos tipos de violência, causando grande mal à educação e à vida. Ficar atento ao bom uso das redes sociais e sua utilização para favorecer a partilha do conhecimento ficou ainda mais evidenciado com a pandemia. É preciso cuidar, acompanhar e utilizar de forma adequada esta bela oportunidade de proximidade virtual que jamais supera ou exclui o presencial.

A descoberta de um novo modo de evangelizar: a pandemia nos obrigou a repensar nossa ação evangelizadora. Fomos obrigados a nos repensar para alcançar o povo, para continuar próximos às pessoas. A renovação de nossa ação pastoral, adotando as celebrações litúrgicas por via digital, não basta. A tecnologia moderna nos desafia a buscar novas formas de vivermos a fé e a caridade em nossas comunidades eclesiais missionárias.

 

(O texto prossegue com algumas sugestões práticas que chama de “inspirações” e também uma série de perguntas)

 

5. Fala com sabedoria, ensina com amor.

 

“O lar é chamado a viver e a cultivar o amor recíproco e a verdade, o respeito e a justiça, a lealdade e a colaboração, o serviço e a disponibilidade para com o próximo, especialmente com os mais frágeis. O lar cristão, que deve manifestar a todos a presença viva do Salvador no mundo e a natureza autêntica da Igreja deve estar impregnado da presença de Deus, colocando nas suas mãos as vicissitudes cotidianas e pedindo a sua ajuda para cumprir de maneira adequada a sua missão imprescindível” (Bento XVI).

Na celebração do Dia de São José durante o segundo ano do seu Pontificado, o Papa Francisco, em sua catequese, nos presenteou com uma bela reflexão em que enfatiza o aspecto educador de São José. Jesus, que é educado no seio da Sagrada Família e por isso cresce em sabedoria e graça, nos convida a apreciar a convivência no ambiente familiar, ouvir e dar atenção aos idosos, escutar as crianças, acompanhar e apoiar os jovens. Em cada etapa da vida habita uma sabedoria.

Nesse sentido, na conclusão deste Texto-Base, recordamos algumas belas exortações do Papa Francisco nesta catequese: “E Jesus ia crescendo em sabedoria, idade e graça diante de Deus e dos homens” (Lc 2,52).

Comecemos pela idade, que constitui a dimensão mais natural, o crescimento físico e psicológico. Juntamente com Maria, José cuidava de Jesus, antes de tudo, a partir deste ponto de vista, ou seja, criou-o, preocupando-se, a fim de que não lhe faltasse o necessário para um desenvolvimento sadio. Não esqueçamos que a tutela cheia de esmero da vida do Menino comportou também a fuga para o Egito, a dura experiência de viver como refugiados – José foi um refugiado, juntamente com Maria e Jesus – para fugir da ameaça de Herodes. Depois, quando voltaram para a pátria, estabelecendo-se em Nazaré, há outro período da vida escondida de Jesus na sua família, no seio da Sagrada Família. Naqueles anos, José ensinou a Jesus também o seu trabalho, e Jesus aprendeu a profissão de carpinteiro, juntamente com o seu pai José. Foi assim que José educou Jesus, a tal ponto, quando era adulto, lhe chamavam o filho do carpinteiro (Mt 13,55).

Passemos à segunda dimensão da educação de Jesus, a da sabedoria. Diz a Escritura que o princípio da sabedoria é o temor do Senhor (Pr 1,7; Eclo 1,14). Temor não tanto no sentido de medo, mas de respeito sagrado, de adoração e de obediência à sua vontade, que procura sempre o nosso bem. José foi para Jesus exemplo e mestre desta sabedoria, que se alimenta da Palavra de Deus. Podemos pensar no modo como José educou o pequeno Jesus a ouvir as Sagradas Escrituras, principalmente acompanhando-o aos sábados à sinagoga de Nazaré. E José acompanhava-o para que Jesus ouvisse a Palavra de Deus na sinagoga. E a prova da escuta profunda de Jesus em relação a Deus, José e Maria tiveram-na – de uma maneira que os surpreendeu – quando ele, com 12 anos, permaneceu no templo de Jerusalém sem que eles o soubessem; e encontram-no depois de três dias, enquanto dialogava com os doutores da lei, os quais ficaram admirados com a sua sabedoria. Eis: Jesus está repleto de sabedoria, porque o Filho de Deus, mas o Pai celeste valeu-se da colaboração de São José, a fim de que o seu Filho pudesse crescer cheio de sabedoria (Lc 2,40).

E por fim, a dimensão da graça. Diz ainda São Lucas, referindo-se a Jesus: a graça de Deus estava sobre Ele (2,40). Aqui, certamente a parte reservada a São José é a mais limitada do que aos âmbitos da idade e da sabedoria. Todavia, seria um erro grave pensar que um pai e uma mãe nada podem fazer para educar os filhos a crescer na graça de Deus. Crescer em idade, crescer em sabedoria, crescer em graça: este é o trabalho que José levou a cabo em relação a Jesus, fazê-lo crescer nestas três dimensões, ajuda-lo a crescer. José o fez de um modo verdadeiramente único, insuperável. Com efeito, ele tinha desposado a mulher cheia de graça (Lc 1,28), e sabia bem que Jesus tinha sido concebido por obra do Espírito Santo. Portanto, neste tempo da graça, a sua obra educativa consistia em secundar a obra do Espírito no coração e na vida de Jesus, em sintonia com Nossa Senhora. Esse âmbito educativo é o mais específico da fé, da adoração e da aceitação da vontade de Deus e do seu desígnio. Também, e sobretudo nesta dimensão da graça, José educou Jesus primariamente com o exemplo: o exemplo de um homem justo (Mt 1,19), que se deixa sempre guiar pela fé, e sabe que a salvação não deriva da observância da lei, mas da graça de Deus, do seu amor e da sua fidelidade.

 

Oração à Nossa Senhora Educadora

 

Virgem Maria, Mãe Educadora, sinal de vida e sabedoria, pelo amor do teu filho Jesus,

intercede por nós a fim de que façamos o discernimento necessário na busca do conhecimento.

Faz-nos compreender que somos transformados naquele que amamos,

aumentando assim as dimensões do nosso coração.

Dá-nos a ousadia de educar, de falar com sabedoria e ensinar com amor,

sobretudo com o testemunho de nossas vidas,

deixando a tua marca de esperança na vida de quem encontramos ao longo da vida.

Maria, tu que tão bem educaste Jesus, auxilia-nos nesta longa caminhada,

revestindo-nos da coragem de experimentar, dia a dia,

a verdadeira felicidade, a verdadeira sabedoria. Amém.

  

               

           

 

Quaresma: História, teologia, liturgia e espiritualidade


A Igreja em cada semana comemora a Ressurreição do Senhor,

celebrando-a uma vez também, na solenidade máxima da Páscoa

juntamente com sua sagrada Paixão (SC 102)

 

1. A festa da Páscoa.

            Segundo Mt 28,1 Jesus ressuscitou “no primeiro dia da semana”. Por essa razão, os primeiros cristãos começaram a reunir-se a cada semana para celebrar a sua festa, um dia depois do sábado judeu. Surge assim o chamado “dia do Senhor”.

            No começo, portanto, não havia nenhuma festa, nenhum tempo especial. Havia somente a celebração semanal da ressurreição do Senhor. Passado algum tempo, os cristãos sentiram a necessidade de celebrar de um modo especial esse acontecimento central da fé. Sentiram a necessidade de instituir a primeira de todas as festas, a Páscoa, considerada o “Domingo dos domingos”, a “Festa das festas”.

            No começo do séc. II essa festa já estava difundida em todas as comunidades cristãs. O seu ponto culminante era a assembléia noturna de oração, que se concluía com a celebração eucarística.

 

2. Como surgiu a Quaresma?

O tempo quaresmal prepara os fiéis para ouvir a Palavra de Deus

mais intensamente e para orar, principalmente pela lembrança

ou preparação do batismo e pela penitência, para celebrar o mistério pascal (SC 109)

 

            Nós sabemos que uma festa não pode ser bem sucedida se não for cuidadosamente preparada. Aproximadamente duzentos anos depois de Cristo, os cristãos, ansiosos por desfrutar em toda a sua plenitude os frutos espirituais da Páscoa, introduziram o costume de precedê-la com três dias, dedicados à oração, à meditação e ao jejum, em sinal de luto pela morte de Cristo[1].

            Essa grande festa, porém, não devia ser somente preparada; era preciso também encontrar uma maneira de prolongar a alegria e a riqueza espiritual da mesma. Foram instituídas então as “sete semanas”, os 50 dias de Pentecostes, que deviam ser celebrados com grande alegria, porque, como dizia um famoso bispo daquele tempo, chamado Irineu, “constituem como um único dia de festa que tem a mesma importância do domingo”. Durante esse período não se jejuava, rezava-se de pé, eram administrados os batismos. Praticamente era como se a Páscoa...durasse 50 dias.

            Passaram-se mais de 150 anos e, por volta dos anos 350 d.C., percebendo que três dias de preparação eram pouco demais, os aumentaram para 40... Nascia a Quaresma[2].

 

3. Por que exatamente 40 dias?

            No mundo bíblico devemos prestar atenção aos números que aí aparecem; muitas vezes, os mesmos têm um sentido simbólico. Deste modo, quando está escrito 40 ou um seu múltiplo, não quer dizer que seja mesmo 40, com exatidão, como se falássemos de 40 reais. Indica um tempo simbólico, que pode ser mais longo ou mais curto.

            Por exemplo, é difícil acreditar que Moisés tenha passado exatamente 40 dias e 40 noites na montanha, sem comer pão e sem beber água (Ex 34,38) e que também Jesus tenha conseguido fazer a mesma coisa (Mt 4,2). Da mesma forma surge também a dúvida se eram exatamente 4.000 os homens para os quais foi multiplicados os pães (Mc 8,9). Entre os muitos significados que os antigos atribuíam ao número 40, um nos interessa de modo especial: o de indicar um período de preparação (mais ou menos prolongado), em vista de um grande acontecimento. Por exemplo: o dilúvio durou 40 dias e 40 noites... e foi a preparação para uma nova humanidade; 40 anos passou Israel no deserto... para preparar-se a entrar na terra prometida; durante 40 dias fizeram penitência os habitantes de Nínive... antes de receber o perdão de Deus; durante 40 dias e 40 noites jejuaram Moisés e Jesus... para preparar-se para a sua missão...

            Está claro, agora, o sentido desse número? Então, para preparar a maior de todas as festas cristãs, quantos dias são necessários? Quarenta, naturalmente!

 

4. O que fazer durante a Quaresma?  

            Desde os tempos antigos, a Quaresma foi considerada como um período de renovação da própria vida. As práticas a serem cumpridas eram sobretudo três: a oração, a luta contra o mal, o jejum.

            A oração para pedir a Deus forças para converter-se e acreditar no evangelho. A luta contra o mal para dominar as paixões e o egoísmo. Por fim o jejum. Para seguir o Mestre o cristão deve ter a força de esquecer de si mesmo, de não pensar no próprio conforto, mas no bem do seu irmão. Assumir uma permanente atitude generosa e desinteressada é, de fato, difícil. Este é o jejum.

            Mas pode o sofrimento ser uma coisa boa? Como pode agradar a Deus a nossa dor? Não! Deus não quer que o homem sofra. Todavia, para ajudar o necessitado, é preciso muitas vezes renunciar àquilo que agrada e isto custa sacrifício. Não é o jejum em si que é bom (às vezes é feito por motivos que não têm nada a ver com religião: há quem se alimente com parcimônia simplesmente para manter-se em boa forma física, para tornar-se elegante, para estar com boa saúde). O que agrada a Deus é que, com o alimento que se consegue economizar com o jejum, se alivia, pelo menos por um dia, a fome de irmão.

            Um livro muito antigo, muito lido pelos primeiros cristãos, o Pastor de Hermas, explica deste modo a ligação entre o jejum e a caridade: “Eis como deverás praticar o jejum: durante o dia de jejum, tu comerás somente pão e água; depois calcularás quanto terias gasto para o teu alimento naquele dia e tu oferecerás este dinheiro a uma viúva, a um órfão ou a um pobre; assim tu te privarás de alguma coisa para que o teu sacrifício seja útil para alguém, para poder alimentar-se. Ele rezará ao Senhor por ti. Se tu jejuares desse modo, o teu sacrifício será agradável a Deus”.

 

5. A Quaresma e os catecúmenos.

            Aproximadamente 350 anos d.C. a Igreja começou a organizar uma preparação muito cuidadosa para o Batismo. Os catecúmenos deviam passar por um longo período de preparação. Durante dois ou três anos deveriam freqüentar fielmente a catequese, depois deviam comprometer-se para levar uma vida honesta para mostrar que seu desejo de se tornar cristão era sincero.

            Cada comunidade celebrava os batizados somente uma vez durante o ano, na noite de Páscoa. Era a famosa vigília sagrada, transcorrida na oração e na meditação da Palavra de Deus e concluída pela manhã, com a celebração eucarística, da qual participavam pela primeira vez também os recém batizados. Sendo que a celebração do batismo constituía a parte central da cerimônia da noite da Páscoa, a Quaresma assumiu uma importância especial para os catecúmenos. Para eles constituía a última etapa antes de receber esse sacramento.

            Durante 40 dias eles recebiam a catequese todos os dias. Quem os instruía não era um catequista qualquer, mas o próprio bispo. Durante esse período participavam também de muitas cerimônias e tinham algumas reuniões, nas quais eram submetidos a “exames”. Verificava-se se tinham assimilado as verdades fundamentais da fé e avaliava-se se a vida deles era coerente com aquilo que professavam. O encontro mais importante tinha lugar na quarta-feira da quarta semana. Era chamado “o grande exame”. Nesse dia – dizia-se – “eram abertos os ouvidos”, porque a eles eram ensinados o “Credo” e o “Pai nosso”, que constituem a síntese de toda a doutrina cristã.

            Se não tivermos presente que a Quaresma devia servir como preparação aos catecúmenos, não conseguiremos entender plenamente o conteúdo das leituras deste período litúrgico. Os textos bíblicos de fato foram escolhidos, sobretudo para aqueles que se preparam para o batismo, particularmente do Ciclo A (falam da água, da luz, da fé, da cegueira, da unção com o óleo, da renuncia ao pecado, da vitória de Cristo sobre a morte...).

            Os catecúmenos são como filhos que estão para nascer. A mãe (que é a Igreja, isto é, a comunidade) lhes dedica toda a sua atenção. “Prepara” o alimento da palavra de Deus especialmente para eles, para o seu paladar, para as suas necessidades. É evidente que, por se tratar de alimento muito bom e saboroso, também os outros filhos são convidados a degustá-lo para se tornarem espiritualmente fortes. A eles é proporcionada a oportunidade para meditar sobre as verdades fundamentais da própria fé e sobre os compromissos (às vezes um pouco esquecidos) assumidos no dia do próprio batismo.

 

6. A Quaresma, tempo de reconciliação.

            Quando os cristãos cometiam pecados graves e públicos, nos primeiros séculos da Igreja, eram excomungados, isto é, eram excluídos da comunidade. Se mais tarde essas pessoas se arrependessem e quisessem reconciliar-se com Deus e com a Igreja, não eram imediatamente readmitidos na comunidade. Era preciso que antes fizessem uma penitência pública, porque também o pecado deles era conhecido por todos. Esta penitência não era de um só dia, durava bastante tempo.

            Quando foi instituída a Quaresma, servia também como tempo de preparação para reconciliação. Na Quinta-feira Santa, durante a missa presidida pelo bispo, os excomungados, vestindo a roupa penitencial (vestidos de saco) e com a cabeça coberta de cinzas, se apresentavam diante da comunidade e declaravam o seu arrependimento e a vontade de converter-se. O bispo ia ao encontro deles e os abraçava, um a um.

            Esse costume da penitência pública foi aos poucos desaparecendo (até porque não eram menos pecadores os que conseguiam manter em segredo os próprios pecados...); permaneceu, porém, o significado da Quaresma como tempo durante o qual todos os cristãos são convocados a se aproximarem do sacramento da reconciliação.

 

7. Teologia e espiritualidade.

            Celebrar a Quaresma significa “penetrar profundamente no mistério de Cristo por meio das celebrações anuais do sacramento quaresmal” (Marsili). A Quaresma é um sinal definido fundamentalmente pela graça e pela salvação conseguidas por Cristo, novo Israel (cf. Mt 2,15), e pela conversão, pela fé, pelo batismo e pela penitência (cf. SC 109-110).

            A celebração atual da Quarta-feira de Cinzas reinterpretou o rito da cinza (cf. Gn 3,19) como expressão da vontade de conversão diante do chamado de Deus. Por isso, introduziu-se uma nova benção sobre aqueles que vão receber as cinzas e se situou o rito depois da homilia. As leituras da missa convidam à autenticidade das obras penitenciais da Quaresma. Os dias da semana seguintes à Quarta-feira de Cinzas se mantêm na mesma linha, com textos sobre as obras penitenciais.

            A quarta-feira de Cinzas dá início a uma longa caminhada, um processo de morte e ressurreição que não vai culminar em derrota, mas em vitória da vida (Páscoa), alimentada pelo Cordeiro, à espera do Espírito Santo. 

            Os domingos constituem a trama de toda a Quaresma, especialmente o ano A, de acentuado caráter batismal. O ano B, ao contrário, desenvolve uma linha cristológico-pascal, enquanto o ano C é mais penitencial. Mas o I e o II domingos dos três anos têm maior acento cristológico, enquanto o III, IV e o V domingos têm acento eclesiológico e sacramental. O Domingo de Ramos tem fisionomia própria. O Jesus que vence as tentações e se transfigura como antevisão de sua vitória definitiva sobre a morte nos convida a vencer também nós as tentações do anti-reino para transfigurarmos toda a realidade.

            É um tempo de fortes apelos vindos da realidade que nos cerca. A cada ano, a Campanha da Fraternidade desperta nossa consciência e abre-nos os olhos para a cruel realidade de um país que se professa cristão, mas é desmentido pelos fatos brutais das chacinas, da violência no campo, na cidade e por inúmeros fatores que nos interpelam e exigem conversão.

            Na Semana Santa, vivemos e revivemos o mistério pascal. O Tríduo Pascal é ocasião importante para a vivência dos sacramentos (Eucaristia e Sacerdócio na quinta-feira, Batismo na vigília pascal). A piedade popular aflora nesses dias, sobretudo na sexta-feira da Paixão. O evangelho de João nos sugere para esse dia (e outros que antecedem) uma atitude contemplativa. A morte de Jesus é a entrega generosa e consciente do Pastor que dá a vida pelas ovelhas, do Senhor-Servo que ama até as últimas conseqüências do amor. Seu lava-pés não termina com a ceia, mas na cruz, quando diz que tudo está consumado. Em vez de desespero ou tristeza, esse evangelho sugere um olhar contemplativo e agradecido, como o gesto daquela mulher que perfumou o corpo de Jesus. Sua morte não é fruto do acaso, pois ele próprio afirmou que dá livremente a vida, tendo poder de entregá-la e poder retomá-la.

            De acordo com o evangelho de João, atitude perfeita é aquela do Discípulo Amado. Ele acompanha em silêncio o Senhor, contemplando a força do amor que se entrega livremente, que se faz servo obediente até a morte de cruz.

            A quaresma é caminho para a Páscoa, para o dia da ressurreição, quando a vida venceu a morte para sempre. A partir da ressurreição do Senhor, há na história uma força de vida invencível e interminável, capaz de contagiar positivamente todos os dias. A Liturgia afirma que todo dia é Páscoa.

 

EXTRA: Que são Indulgências?  As indulgências proporcionam-nos um modo acessível e proveitoso de podermos satisfazer pelo castigo temporal que ficamos devendo depois de os nossos pecados terem sido perdoados. Podemos ganhar indulgências todos os dias, e sempre será bom ter presente que abreviam o nosso purgatório. O Catecismo da Igreja Católica define-a assim: “Indulgência é a remissão, diante de Deus, da pena temporal devida pelos pecados cuja culpa foi perdoada, remissão que o fiel bem disposto obtém em certas e determinadas condições pela intervenção da Igreja que, como dispensadora da redenção, distribui e aplica por sua autoridade o tesouro das satisfações de Cristo e dos santos” (n. 1471).

            A Igreja concede as indulgências tirando-as do tesouro espiritual de méritos satisfatórios de Cristo e dos santos. Vejamos como atua uma indulgência: a Igreja diz que concede indulgência parcial a qualquer oração legítima com que façamos um ato de fé (e também de esperança, caridade e contrição). Com isso, a Igreja declara: “Se você está sem pecado mortal e recita um ato de fé com atenção e devoção, eu, sua Mãe, a Igreja, ofereço a Deus, do meu tesouro espiritual, os méritos que forem necessários para satisfazer o castigo temporal devido pelos seus pecados, pelo mesmo valor meritório que teria seu ato de fé independentemente da indulgência”.

            Qualquer oração ou boa obra a que foram concedidas indulgências é como um cheque que a Igreja põe em nossas mãos. Podemos descontá-lo da conta do nosso banco espiritual das superabundantes satisfações de Cristo e dos Santos, e assim pagar nossa própria dívida para com Deus. Esta dívida é paga em maior ou menor grau – caso das indulgências parciais – segundo o amor com que fazemos a obra enriquecida com indulgências.  

            Às vezes, no entanto, a Igreja dá-nos, por assim dizer, um cheque em branco contra o seu tesouro espiritual: é o que chamamos indulgência plenária. Neste caso, é como se a Igreja dissesse: “Cumpra estas condições que estabeleci – com todas as disposições devidas – e eu, sua Mãe, a Igreja, tirarei do meu tesouro espiritual toda satisfação que for necessária para apagar inteiramente as suas dívidas de pena temporal”. Se ganhássemos uma indulgência plenária e morrêssemos logo após, reunir-nos-íamos a Deus no céu imediatamente, sem ter que satisfazer pelos pecados nossos no purgatório.

            Na prática, é muito difícil ter a certeza de se ter ganho uma indulgência plenária. Para consegui-la é necessário estar absolutamente desprendido de todo o pecado deliberado, o que exige uma dor sincera de todos os pecados, tanto veniais como mortais, e o propósito de evitar daí por diante até o menor pecado.. nem sempre podemos ter a certeza de que a nossa renúncia ao pecado é tão total como se exige. A Igreja, no entanto, ao conceder uma indulgência plenária, concede-a com a idéia de que, se não estamos devidamente preparados para lucrá-la, ao menos ganhamos a indulgência parcialmente, segundo a maior ou menor perfeição das nossas disposições.

            Para ganhar cada uma das indulgências plenárias, além da condição mencionada, são requeridas outras três: confissão sacramental, comunhão eucarística e oração pelas intenções do Sumo Pontífice. As três condições podem ser preenchidas em dias diversos, antes ou após a realização da obra prescrita; mas convém que a comunhão e a oração pelas intenções do Pontífice se façam no mesmo dia em que se pratica a obra.

 

Fontes: “A fé explicada” – Leo J. Trese

             “Roteiros Homiléticos” – Pe. José Bortolini

             “A Liturgia da Igreja” – Juan Lopez Martin

             “Celebrando a Palavra” – Fernando Armellini   

           



[1] Temos aqui o primeiro esboço do que se chamará no futuro de Tríduo Pascal: quinta-feira Santa (Lava pés – instituição da Eucaristia), sexta-feira Santa (paixão), sábado Santo (vigília da ressurreição), que terá a sua estruturação no séc. VII. A celebração do mistério pascal, ao mesmo tempo em que evoca os fatos finais da vida terrena de Cristo, revive e atualiza a participação dos batizados na passagem das trevas para a luz.

[2] A Quaresma é o resultado de um longo processo de sedimentação de três itinerários litúrgicos-sacramentais: a preparação imediata dos catecúmenos para os sacramentos da iniciação; a penitência pública; e a participação da comunidade cristã nos dois anteriores como preparação para a Páscoa. A Quaresma ou quadragésima é conhecida com esse nome desde o século IV e faz referência ao significado do número 40 na Bíblia.