Quaresma: História, teologia, liturgia e espiritualidade


A Igreja em cada semana comemora a Ressurreição do Senhor,

celebrando-a uma vez também, na solenidade máxima da Páscoa

juntamente com sua sagrada Paixão (SC 102)

 

1. A festa da Páscoa.

            Segundo Mt 28,1 Jesus ressuscitou “no primeiro dia da semana”. Por essa razão, os primeiros cristãos começaram a reunir-se a cada semana para celebrar a sua festa, um dia depois do sábado judeu. Surge assim o chamado “dia do Senhor”.

            No começo, portanto, não havia nenhuma festa, nenhum tempo especial. Havia somente a celebração semanal da ressurreição do Senhor. Passado algum tempo, os cristãos sentiram a necessidade de celebrar de um modo especial esse acontecimento central da fé. Sentiram a necessidade de instituir a primeira de todas as festas, a Páscoa, considerada o “Domingo dos domingos”, a “Festa das festas”.

            No começo do séc. II essa festa já estava difundida em todas as comunidades cristãs. O seu ponto culminante era a assembléia noturna de oração, que se concluía com a celebração eucarística.

 

2. Como surgiu a Quaresma?

O tempo quaresmal prepara os fiéis para ouvir a Palavra de Deus

mais intensamente e para orar, principalmente pela lembrança

ou preparação do batismo e pela penitência, para celebrar o mistério pascal (SC 109)

 

            Nós sabemos que uma festa não pode ser bem sucedida se não for cuidadosamente preparada. Aproximadamente duzentos anos depois de Cristo, os cristãos, ansiosos por desfrutar em toda a sua plenitude os frutos espirituais da Páscoa, introduziram o costume de precedê-la com três dias, dedicados à oração, à meditação e ao jejum, em sinal de luto pela morte de Cristo[1].

            Essa grande festa, porém, não devia ser somente preparada; era preciso também encontrar uma maneira de prolongar a alegria e a riqueza espiritual da mesma. Foram instituídas então as “sete semanas”, os 50 dias de Pentecostes, que deviam ser celebrados com grande alegria, porque, como dizia um famoso bispo daquele tempo, chamado Irineu, “constituem como um único dia de festa que tem a mesma importância do domingo”. Durante esse período não se jejuava, rezava-se de pé, eram administrados os batismos. Praticamente era como se a Páscoa...durasse 50 dias.

            Passaram-se mais de 150 anos e, por volta dos anos 350 d.C., percebendo que três dias de preparação eram pouco demais, os aumentaram para 40... Nascia a Quaresma[2].

 

3. Por que exatamente 40 dias?

            No mundo bíblico devemos prestar atenção aos números que aí aparecem; muitas vezes, os mesmos têm um sentido simbólico. Deste modo, quando está escrito 40 ou um seu múltiplo, não quer dizer que seja mesmo 40, com exatidão, como se falássemos de 40 reais. Indica um tempo simbólico, que pode ser mais longo ou mais curto.

            Por exemplo, é difícil acreditar que Moisés tenha passado exatamente 40 dias e 40 noites na montanha, sem comer pão e sem beber água (Ex 34,38) e que também Jesus tenha conseguido fazer a mesma coisa (Mt 4,2). Da mesma forma surge também a dúvida se eram exatamente 4.000 os homens para os quais foi multiplicados os pães (Mc 8,9). Entre os muitos significados que os antigos atribuíam ao número 40, um nos interessa de modo especial: o de indicar um período de preparação (mais ou menos prolongado), em vista de um grande acontecimento. Por exemplo: o dilúvio durou 40 dias e 40 noites... e foi a preparação para uma nova humanidade; 40 anos passou Israel no deserto... para preparar-se a entrar na terra prometida; durante 40 dias fizeram penitência os habitantes de Nínive... antes de receber o perdão de Deus; durante 40 dias e 40 noites jejuaram Moisés e Jesus... para preparar-se para a sua missão...

            Está claro, agora, o sentido desse número? Então, para preparar a maior de todas as festas cristãs, quantos dias são necessários? Quarenta, naturalmente!

 

4. O que fazer durante a Quaresma?  

            Desde os tempos antigos, a Quaresma foi considerada como um período de renovação da própria vida. As práticas a serem cumpridas eram sobretudo três: a oração, a luta contra o mal, o jejum.

            A oração para pedir a Deus forças para converter-se e acreditar no evangelho. A luta contra o mal para dominar as paixões e o egoísmo. Por fim o jejum. Para seguir o Mestre o cristão deve ter a força de esquecer de si mesmo, de não pensar no próprio conforto, mas no bem do seu irmão. Assumir uma permanente atitude generosa e desinteressada é, de fato, difícil. Este é o jejum.

            Mas pode o sofrimento ser uma coisa boa? Como pode agradar a Deus a nossa dor? Não! Deus não quer que o homem sofra. Todavia, para ajudar o necessitado, é preciso muitas vezes renunciar àquilo que agrada e isto custa sacrifício. Não é o jejum em si que é bom (às vezes é feito por motivos que não têm nada a ver com religião: há quem se alimente com parcimônia simplesmente para manter-se em boa forma física, para tornar-se elegante, para estar com boa saúde). O que agrada a Deus é que, com o alimento que se consegue economizar com o jejum, se alivia, pelo menos por um dia, a fome de irmão.

            Um livro muito antigo, muito lido pelos primeiros cristãos, o Pastor de Hermas, explica deste modo a ligação entre o jejum e a caridade: “Eis como deverás praticar o jejum: durante o dia de jejum, tu comerás somente pão e água; depois calcularás quanto terias gasto para o teu alimento naquele dia e tu oferecerás este dinheiro a uma viúva, a um órfão ou a um pobre; assim tu te privarás de alguma coisa para que o teu sacrifício seja útil para alguém, para poder alimentar-se. Ele rezará ao Senhor por ti. Se tu jejuares desse modo, o teu sacrifício será agradável a Deus”.

 

5. A Quaresma e os catecúmenos.

            Aproximadamente 350 anos d.C. a Igreja começou a organizar uma preparação muito cuidadosa para o Batismo. Os catecúmenos deviam passar por um longo período de preparação. Durante dois ou três anos deveriam freqüentar fielmente a catequese, depois deviam comprometer-se para levar uma vida honesta para mostrar que seu desejo de se tornar cristão era sincero.

            Cada comunidade celebrava os batizados somente uma vez durante o ano, na noite de Páscoa. Era a famosa vigília sagrada, transcorrida na oração e na meditação da Palavra de Deus e concluída pela manhã, com a celebração eucarística, da qual participavam pela primeira vez também os recém batizados. Sendo que a celebração do batismo constituía a parte central da cerimônia da noite da Páscoa, a Quaresma assumiu uma importância especial para os catecúmenos. Para eles constituía a última etapa antes de receber esse sacramento.

            Durante 40 dias eles recebiam a catequese todos os dias. Quem os instruía não era um catequista qualquer, mas o próprio bispo. Durante esse período participavam também de muitas cerimônias e tinham algumas reuniões, nas quais eram submetidos a “exames”. Verificava-se se tinham assimilado as verdades fundamentais da fé e avaliava-se se a vida deles era coerente com aquilo que professavam. O encontro mais importante tinha lugar na quarta-feira da quarta semana. Era chamado “o grande exame”. Nesse dia – dizia-se – “eram abertos os ouvidos”, porque a eles eram ensinados o “Credo” e o “Pai nosso”, que constituem a síntese de toda a doutrina cristã.

            Se não tivermos presente que a Quaresma devia servir como preparação aos catecúmenos, não conseguiremos entender plenamente o conteúdo das leituras deste período litúrgico. Os textos bíblicos de fato foram escolhidos, sobretudo para aqueles que se preparam para o batismo, particularmente do Ciclo A (falam da água, da luz, da fé, da cegueira, da unção com o óleo, da renuncia ao pecado, da vitória de Cristo sobre a morte...).

            Os catecúmenos são como filhos que estão para nascer. A mãe (que é a Igreja, isto é, a comunidade) lhes dedica toda a sua atenção. “Prepara” o alimento da palavra de Deus especialmente para eles, para o seu paladar, para as suas necessidades. É evidente que, por se tratar de alimento muito bom e saboroso, também os outros filhos são convidados a degustá-lo para se tornarem espiritualmente fortes. A eles é proporcionada a oportunidade para meditar sobre as verdades fundamentais da própria fé e sobre os compromissos (às vezes um pouco esquecidos) assumidos no dia do próprio batismo.

 

6. A Quaresma, tempo de reconciliação.

            Quando os cristãos cometiam pecados graves e públicos, nos primeiros séculos da Igreja, eram excomungados, isto é, eram excluídos da comunidade. Se mais tarde essas pessoas se arrependessem e quisessem reconciliar-se com Deus e com a Igreja, não eram imediatamente readmitidos na comunidade. Era preciso que antes fizessem uma penitência pública, porque também o pecado deles era conhecido por todos. Esta penitência não era de um só dia, durava bastante tempo.

            Quando foi instituída a Quaresma, servia também como tempo de preparação para reconciliação. Na Quinta-feira Santa, durante a missa presidida pelo bispo, os excomungados, vestindo a roupa penitencial (vestidos de saco) e com a cabeça coberta de cinzas, se apresentavam diante da comunidade e declaravam o seu arrependimento e a vontade de converter-se. O bispo ia ao encontro deles e os abraçava, um a um.

            Esse costume da penitência pública foi aos poucos desaparecendo (até porque não eram menos pecadores os que conseguiam manter em segredo os próprios pecados...); permaneceu, porém, o significado da Quaresma como tempo durante o qual todos os cristãos são convocados a se aproximarem do sacramento da reconciliação.

 

7. Teologia e espiritualidade.

            Celebrar a Quaresma significa “penetrar profundamente no mistério de Cristo por meio das celebrações anuais do sacramento quaresmal” (Marsili). A Quaresma é um sinal definido fundamentalmente pela graça e pela salvação conseguidas por Cristo, novo Israel (cf. Mt 2,15), e pela conversão, pela fé, pelo batismo e pela penitência (cf. SC 109-110).

            A celebração atual da Quarta-feira de Cinzas reinterpretou o rito da cinza (cf. Gn 3,19) como expressão da vontade de conversão diante do chamado de Deus. Por isso, introduziu-se uma nova benção sobre aqueles que vão receber as cinzas e se situou o rito depois da homilia. As leituras da missa convidam à autenticidade das obras penitenciais da Quaresma. Os dias da semana seguintes à Quarta-feira de Cinzas se mantêm na mesma linha, com textos sobre as obras penitenciais.

            A quarta-feira de Cinzas dá início a uma longa caminhada, um processo de morte e ressurreição que não vai culminar em derrota, mas em vitória da vida (Páscoa), alimentada pelo Cordeiro, à espera do Espírito Santo. 

            Os domingos constituem a trama de toda a Quaresma, especialmente o ano A, de acentuado caráter batismal. O ano B, ao contrário, desenvolve uma linha cristológico-pascal, enquanto o ano C é mais penitencial. Mas o I e o II domingos dos três anos têm maior acento cristológico, enquanto o III, IV e o V domingos têm acento eclesiológico e sacramental. O Domingo de Ramos tem fisionomia própria. O Jesus que vence as tentações e se transfigura como antevisão de sua vitória definitiva sobre a morte nos convida a vencer também nós as tentações do anti-reino para transfigurarmos toda a realidade.

            É um tempo de fortes apelos vindos da realidade que nos cerca. A cada ano, a Campanha da Fraternidade desperta nossa consciência e abre-nos os olhos para a cruel realidade de um país que se professa cristão, mas é desmentido pelos fatos brutais das chacinas, da violência no campo, na cidade e por inúmeros fatores que nos interpelam e exigem conversão.

            Na Semana Santa, vivemos e revivemos o mistério pascal. O Tríduo Pascal é ocasião importante para a vivência dos sacramentos (Eucaristia e Sacerdócio na quinta-feira, Batismo na vigília pascal). A piedade popular aflora nesses dias, sobretudo na sexta-feira da Paixão. O evangelho de João nos sugere para esse dia (e outros que antecedem) uma atitude contemplativa. A morte de Jesus é a entrega generosa e consciente do Pastor que dá a vida pelas ovelhas, do Senhor-Servo que ama até as últimas conseqüências do amor. Seu lava-pés não termina com a ceia, mas na cruz, quando diz que tudo está consumado. Em vez de desespero ou tristeza, esse evangelho sugere um olhar contemplativo e agradecido, como o gesto daquela mulher que perfumou o corpo de Jesus. Sua morte não é fruto do acaso, pois ele próprio afirmou que dá livremente a vida, tendo poder de entregá-la e poder retomá-la.

            De acordo com o evangelho de João, atitude perfeita é aquela do Discípulo Amado. Ele acompanha em silêncio o Senhor, contemplando a força do amor que se entrega livremente, que se faz servo obediente até a morte de cruz.

            A quaresma é caminho para a Páscoa, para o dia da ressurreição, quando a vida venceu a morte para sempre. A partir da ressurreição do Senhor, há na história uma força de vida invencível e interminável, capaz de contagiar positivamente todos os dias. A Liturgia afirma que todo dia é Páscoa.

 

EXTRA: Que são Indulgências?  As indulgências proporcionam-nos um modo acessível e proveitoso de podermos satisfazer pelo castigo temporal que ficamos devendo depois de os nossos pecados terem sido perdoados. Podemos ganhar indulgências todos os dias, e sempre será bom ter presente que abreviam o nosso purgatório. O Catecismo da Igreja Católica define-a assim: “Indulgência é a remissão, diante de Deus, da pena temporal devida pelos pecados cuja culpa foi perdoada, remissão que o fiel bem disposto obtém em certas e determinadas condições pela intervenção da Igreja que, como dispensadora da redenção, distribui e aplica por sua autoridade o tesouro das satisfações de Cristo e dos santos” (n. 1471).

            A Igreja concede as indulgências tirando-as do tesouro espiritual de méritos satisfatórios de Cristo e dos santos. Vejamos como atua uma indulgência: a Igreja diz que concede indulgência parcial a qualquer oração legítima com que façamos um ato de fé (e também de esperança, caridade e contrição). Com isso, a Igreja declara: “Se você está sem pecado mortal e recita um ato de fé com atenção e devoção, eu, sua Mãe, a Igreja, ofereço a Deus, do meu tesouro espiritual, os méritos que forem necessários para satisfazer o castigo temporal devido pelos seus pecados, pelo mesmo valor meritório que teria seu ato de fé independentemente da indulgência”.

            Qualquer oração ou boa obra a que foram concedidas indulgências é como um cheque que a Igreja põe em nossas mãos. Podemos descontá-lo da conta do nosso banco espiritual das superabundantes satisfações de Cristo e dos Santos, e assim pagar nossa própria dívida para com Deus. Esta dívida é paga em maior ou menor grau – caso das indulgências parciais – segundo o amor com que fazemos a obra enriquecida com indulgências.  

            Às vezes, no entanto, a Igreja dá-nos, por assim dizer, um cheque em branco contra o seu tesouro espiritual: é o que chamamos indulgência plenária. Neste caso, é como se a Igreja dissesse: “Cumpra estas condições que estabeleci – com todas as disposições devidas – e eu, sua Mãe, a Igreja, tirarei do meu tesouro espiritual toda satisfação que for necessária para apagar inteiramente as suas dívidas de pena temporal”. Se ganhássemos uma indulgência plenária e morrêssemos logo após, reunir-nos-íamos a Deus no céu imediatamente, sem ter que satisfazer pelos pecados nossos no purgatório.

            Na prática, é muito difícil ter a certeza de se ter ganho uma indulgência plenária. Para consegui-la é necessário estar absolutamente desprendido de todo o pecado deliberado, o que exige uma dor sincera de todos os pecados, tanto veniais como mortais, e o propósito de evitar daí por diante até o menor pecado.. nem sempre podemos ter a certeza de que a nossa renúncia ao pecado é tão total como se exige. A Igreja, no entanto, ao conceder uma indulgência plenária, concede-a com a idéia de que, se não estamos devidamente preparados para lucrá-la, ao menos ganhamos a indulgência parcialmente, segundo a maior ou menor perfeição das nossas disposições.

            Para ganhar cada uma das indulgências plenárias, além da condição mencionada, são requeridas outras três: confissão sacramental, comunhão eucarística e oração pelas intenções do Sumo Pontífice. As três condições podem ser preenchidas em dias diversos, antes ou após a realização da obra prescrita; mas convém que a comunhão e a oração pelas intenções do Pontífice se façam no mesmo dia em que se pratica a obra.

 

Fontes: “A fé explicada” – Leo J. Trese

             “Roteiros Homiléticos” – Pe. José Bortolini

             “A Liturgia da Igreja” – Juan Lopez Martin

             “Celebrando a Palavra” – Fernando Armellini   

           



[1] Temos aqui o primeiro esboço do que se chamará no futuro de Tríduo Pascal: quinta-feira Santa (Lava pés – instituição da Eucaristia), sexta-feira Santa (paixão), sábado Santo (vigília da ressurreição), que terá a sua estruturação no séc. VII. A celebração do mistério pascal, ao mesmo tempo em que evoca os fatos finais da vida terrena de Cristo, revive e atualiza a participação dos batizados na passagem das trevas para a luz.

[2] A Quaresma é o resultado de um longo processo de sedimentação de três itinerários litúrgicos-sacramentais: a preparação imediata dos catecúmenos para os sacramentos da iniciação; a penitência pública; e a participação da comunidade cristã nos dois anteriores como preparação para a Páscoa. A Quaresma ou quadragésima é conhecida com esse nome desde o século IV e faz referência ao significado do número 40 na Bíblia. 

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