A Tríade Quaresmal: Esmola, Oração e Jejum.


Introdução. A abertura da Quaresma, com a 4ª feira de Cinzas nos apresenta todos os anos o texto de Mateus, onde Jesus insere, no seu sermão da Montanha, essas práticas da piedade judaica. Jesus as acolhe na sua dinâmica espiritual e ao mesmo tempo as critica. Elas só fazem sentido quando são praticadas de dentro para fora, não quando visam ao reconhecimento dos homens. Ao dar esmolas, a mão esquerda não deve saber o que a direita está fazendo. Dou porque é o momento para fazer isso. Não quero fazer a contabilidade de minhas doações, nem quero me vangloriar delas. Jesus sempre insiste no segredo: dar esmola e jejuar são atos que devem ficar em segredo. As boas ações devem ficar escondidas não só diante dos homens, como até mesmo diante do próprio ego. Não devo fazer o bem com o intuito de poder fazer uma boa avaliação de mim mesmo. Aquele avaliador dentro de nós nem deve saber daquilo que se faz. Deve ser um ato que emana simplesmente de nós porque está na hora de fazê-lo, não porque o bom comportamento nos coloca acima dos outros. Nossa proposta é dar uma “olhada” no texto, um pouco de exegese, e recolher o ensinamento que brota do mesmo para nossa vivência cristã.

Texto: Mt 6,1-18 (sem o Pai nosso).

1. Justiça perante Deus. Estamos no centro do sermão da montanha. Jesus vem insistindo com seus discípulos numa observação da Lei e o excedente de justiça do cristão na vivência da mesma. Agora ele se volta para um discurso mais na linha sapiencial. Essa prática de piedade judaica remonta ao texto de Tb 12,7b-8. Mateus muda a sequência. O tema da oração, que culmina no Pai nosso, encontra-se no centro (vv.5-15), emoldurado por instruções sobre a esmola (vv. 2-4) e sobre o jejum (vv. 16-18). A ênfase recai sobre a oração como ação central dos cristãos, os quais, orando, estão em comunicação imediata com Deus. A questão, porém, é como esse dirigir-se a Deus em palavra e ação deve acontecer afim de que essas correspondem ao excedente de justiça que se exige do cristão (5,20).

- As instruções orientam para o comportamento pessoal correto para dentro e, ao mesmo tempo, mostram, a partir de dentro, os perigos inerentes à exigência do extraordinário, pois justiça como justiça própria diante de Deus pode ser pecado. Esta é, certamente, a razão por que Mt situa a oração correta no centro das três instruções e, assim, ressalta a oração como meio decisivo para a obediência e para a justiça. 

2. O Tema. No início das instruções, Mt coloca a advertência contra uma falsa prática da “justiça”. Os cristãos agem erroneamente quando realizam suas obras de piedade com a intenção de serem vistos pelas pessoas. Tal advertência não iria de encontro ao pedido de que a luz emanada do testemunho pessoal deveria brilhar entre os homens (5,16)? Na realidade a tensão é apenas aparente, uma vez que tais obras seriam praticadas perante Deus.

- A ideia de recompensa que domina as três instruções pode, inicialmente, causar admiração, mas ela corresponde à meta do agir cristão, mencionado em 5,20: a “entrada no Reino dos Céus”, sinônimo de comunhão com Deus. Ele mesmo é a recompensa indivisa, que se oferece a todo aquele que acolhe sua oferta gratuita e a ela responde por meio de ações. Tal recompensa final é a motivação mais forte da ética de Mt.

- Quem na verdade exibe suas justas ações está ocupado consigo mesmo. Para este, Deus significa menos do que o julgamento dos homens, de cuja opinião ele se faz dependente. O que ele pode granjear para si é a admiração, que deve ser conseguida, a cada vez, por meio da propaganda do rendimento religioso. O que não se pode conseguir com isso é o dom do relacionamento de amor com Deus. Os cristãos que agem assim não têm consequentemente mais nenhuma recompensa divina a esperar, “pois já receberam sua recompensa” (6,2.5.16). O versículo 1 visa, portanto, a pessoas de coração puro, às quais é prometida a contemplação de Deus (cf. 5,8). “Não se trata daquilo que veem os homens, pois eles veem apenas com os olhos, mas o Senhor olha o coração” (1Sm 16,7; cf. Rm 2,28-29).

3. Esmola (Beneficência, doações, caridade) em segredo (vv. 2-4). A esmola tinha (e tem) no judaísmo um prestígio especialmente alto. Mesmo para ele sempre existiu a tentação de mergulhar fundo no bolso por amor à publicidade. A questão de manter o segredo de sua doação particular era incentivada na piedade judaica. Considera-se como ideal que nem o beneficiário saiba de quem está recebendo a oferta, nem o doador saiba a quem ele dá, pois as esmolas encontram “sua recompensa somente de acordo com a medida do amor que nelas está contida”. Doação pública ostensiva de esmolas nas sinagogas ou nas ruas do povoado era, além disso, considerada vergonhosa para o recebedor e, imediatamente, uma ação má.

- A esse contexto pertence a denominação ‘hipócrita’[1] (v. 2c) para pessoas que pretendem tirar proveito para si mesmas da exibição pública de sua solicitude social. A justiça que ultrapassa a medida é não permitir que se saiba o que foi feito, dado ou doado, não se faça a ‘publicação’ da obra: “... Não saiba tua esquerda o que faz a tua direita”. Ainda aqui se pode especular que a Antiguidade considerava o lado direito como positivo, o esquerdo como negativo. Se essa procede, então toda influência negativa deve ser evitada a partir de dentro. No caso, podem-se considerar negativas: a ambição, a vaidade, a arrogância.

- Nossa sociedade de resultados, às vezes prontamente homicida, delineia-se aqui. A procura de tudo quantificar parece constituir um sinal do nosso tempo e ainda mais quando se faz isso para ressaltar o valor econômico, passando ao largo do objeto e de sua qualidade.

- Os vv. 3-4 parafraseiam o relacionamento escatológico entre Deus e o ser humano, aqui e além, em cima e embaixo. O Deus paternal vê no segredo, conhece nosso coração melhor do que nós próprios. Um amor que, também diante de Deus, não leva em conta a si mesmo, experimenta como recompensa o amor de Deus. Que se tem em mente esse relacionamento pessoal do amor, dá-o a entender a expressão ‘teu Pai’, encontrada somente aqui nos evangelhos sinóticos. Ela faz lembrar a relação Pai-Filho entre Deus e Jesus, que se esvazia de si mesmo até a morte de cruz e, por essa razão, foi elevado por Deus e constituído nosso Senhor (cf. Fl 2,6-11). O Pai, que nos verdadeiros seguidores de Jesus, pode ‘ver’ a desinteressada dedicação de Jesus aos pobres, remunera esse tipo de auto esvaziamento de forma análoga, uma vez que ele ‘vê’ neles a imagem de seu Filho. O amor que esquece a si mesmo é recompensado pelo amor, pois a recompensa do amor é amor.

4. A Oração em segredo (vv. 5-6). A oração constitui a instrução central do sermão da montanha. Quão importante é esse tema para o evangelista, mostra-o, entre outras coisas, o fato de ele, no fim do corpo do discurso, colocar um insistente apelo à oração de petição (7,7-11). A instrução reflete ao mesmo tempo o ambiente judeu-cristão e o comportamento preventivo contra os formalismos rabínicos. Ela se dirige particularmente a cada leitor como orante privado.

- Os judeus também tinham seus momentos de oração privada, mas ao mesmo tempo regulado, no tempo de Jesus, pelos sacrifícios que acontecem no Templo de Jerusalém pela manhã e pela tarde. A partir da fixação dos tempos de oração, resulta que o fariseu piedoso faz, também, em público, sua oração privada, onde quer que esteja no momento. Reza-se fundamentalmente de pé. O ajoelhar-se e o prostrar-se eram apropriados somente para o Templo.

- Censura-se, mais uma vez, uma hipocrisia que faz da oração uma demonstração na qual a pessoa se exibe a outras pessoas, em vez de dirigir-se a Deus somente. É evidente que, com isso, não existia uma desconfiança total na oração judaica. Alude-se antes à possibilidade demasiadamente humana de abusar da oração para satisfazer desejos egoístas. [2]

- Quando Mt se refere ao quarto, certamente não o faz na compreensão de nossos dias, pois aqui trata-se de um espaço escuro, sem janelas, no tempo do autor corresponderia a despensa ou depósito; isso não tem muita importância. Mais importante, porém, é que a porta pode ser trancada e que, durante a oração, é fechada. Mt também explicita o exemplo nesse sentido: “Ora a teu Pai que está lá, no segredo” (v. 6c). A frase nada diz a respeito do lugar da oração[3], mas sobre Deus como Deus escondido, oculto, a quem a oração em segredo é adequada, uma vez que Ele, como abscôndito, ‘manifesta o seu ser’ estando presente no secreto. Então a oração transforma-se num colóquio pessoal, dirigido a esse Deus olhos nos olhos, coração a coração. O ‘quarto’ torna-se, portanto, metáfora para o âmbito do qual todas as demais pessoas são excluídas e onde o ser humano encontra-se completamente para si e com seu Deus e Pai: É o aposento da vida, pois aqui o mistério de nossa vida penetra o mistério da vida mesma, o Deus vivo. A um tal orante é prometida a ‘recompensa’ daquele Deus onipresente e atuante no mais íntimo cerne pessoal de cada ser humano. Deus se oferece, visto que sua oração antecipa, por assim dizer, a comunhão com Deus que constitui o Reino dos céus.   

5. Jejum em segredo (vv. 16-18). A terceira instrução, elaborada de forma especialmente cuidadosa, tal como a precedente, apela a um comportamento que é segundo Deus, em segredo. O ser de Deus como Pai que está no segredo e que vê o segredo (v. 18b) é ainda mais fortemente enfatizado do que na catequese da oração.

- A advertência contra um comportamento equivoco durante o jejum diz respeito, mais uma vez, aos hipócritas que, sem sabedoria alguma, colocam a própria honra no lugar da honra de Deus. Eles se apresentam como pessoas sombrias e carrancudas, sem brilho[4], que não se lavam nem se untam quando jejuam. Na realidade, trata-se, de fato de uma expressão de penitência, uma vez que o deixar de lavar-se e perfumar-se nas extensões climáticas do Oriente pode ter consequências desagradáveis. O texto não entra no mérito dessa questão, mas aponta somente que isso acontece a fim de mostrar-se às pessoas como aquele que jejua, ou seja, para poder dar na vista. A fim de conseguir esse objetivo, o hipócrita deve distanciar-se daqueles que levam uma vida normal. O jejum como sinal de conversão para Deus, deveria ser uma ruptura consigo mesmo.

- A instrução positiva não questiona o jejum cristão. Ela exige apenas que os cristãos, quando jejuarem, cuidem do corpo como de costume. É provável que tal recomendação esteja atrelado ao fato dos cristãos seguirem a tradição judaica de jejuarem dois dias na semana. Tal higiene corporal deve servir justamente para não aparecer diante dos homens como quem está jejuando. Com isso, certamente não se fala em favor de uma ‘falsidade’ de outro tipo, que serviria apenas à vaidade própria. Trata-se antes, de um tipo de jejum que tem como meta unicamente o voltar-se para Deus. Somente assim o jejum torna-se um acontecimento existencial.

- De acordo com os sinóticos, o próprio Jesus jejuou quarenta dias no deserto, o lugar dos demônios e do encontro com Deus. Para ele, esse ‘deserto’ estava e está fundamentalmente no presente. No deserto de sua existência terrena, Jesus encontrava-se na sempre renovada decisão de escolher entre uma carreira brilhante, a ‘fim de ser visto pelos homens’, e um caminho que só tem validade diante de ‘seu Pai, que vê no segredo’, no final da tríade das tentações cita-se Dt 6,16: “Ao Senhor teu Deus adorarás e a ele só prestarás culto” (Mt 4,10). Jesus decidiu-se pela renuncia si mesmo como profeta andarilho, sem seguranças, e por fim à sua vida, fama e dignidade, até o abandono de Deus na morte de cruz. Jejuar, portanto, é mais do que a renúncia à comida e à bebida. O jejum diz respeito também aos bens espirituais, tais como a obsequiosa renúncia ao uso da superioridade intelectual, das vantagens profissionais ou de ocasiões de sucesso em favor de colegas malsucedidos etc. Tal ‘jejum’ é um múltiplo treino no único necessário. É a sempre renovada tentativa de se entregar, a fim de poder cair nas mãos de Deus.   

Conclusão: No centro do ensinamento sobre a montanha encontra-se a questão a propósito de um comportamento dos cristãos que corresponda deveras à natureza de Deus. As três instruções a respeito das tradicionais obras de piedade aludem à dimensão interior do indivíduo. A tendência de base soa assim: diante de Deus, não se pode nem se deve representar nenhum papel por mais bem ensaiado que seja, pois Deus é o ‘Pai que vê no segredo’. Diante dele, só se mantem a veracidade absoluta do próprio ser pessoal, que se deve manifestar nas boas obras. A autenticidade do cristão, porém, está marcada pelo conhecimento do amor paternal de Deus, que deve ser correspondido amorosamente. Uma vez que, em contrapartida, a recompensa de tal amor de Deus só pode ser novamente o amor ilimitado do Pai, privam-se dessa recompensa os que pretendem ‘granjear’ o sucedâneo de uma recompensa ‘à moda de justificação pelas obras’ sob a forma de admiração e veneração humanas. O mesmo vale também para a loquacidade pagã, que procura obrigar a divindade a realizar os próprios desejos.   

“Quem quiser rezar deve entrar no seu quarto e trancar a porta. “Então dirige a tua oração ao teu Pai que está ali, no segredo” (6,6). Não são apenas as paredes do quarto exterior que ocultam o meu ato de rezar dos olhares dos outros, há também o quarto interior, para o qual devo retirar-me na hora de rezar: é o quarto do coração. A verdadeira oração realiza-se no quarto escondido de meu coração. É lá que formo uma unidade com Deus. No entanto, não preciso refletir sobre esse fato: estou simplesmente em Deus. Nisso consiste o segredo da oração. Para Jesus, rezar significa: estender diante de Deus o que está oculto. Estendendo-o diante dele, Deus o ilumina e o transforma com a luz do seu amor. Mas isso significa também que preciso estender tudo diante de Deus, mesmo aquilo que é oculto para mim: o meu inconsciente. A luz de Deus deve penetrar em todos os abismos e minha alma, para que tudo o que existe dentro de mim seja tocado e transformado por Deus. A oração do discípulo não deve ser abundante de palavras, não devemos multiplicar palavras como fazem os pagãos (6,7). Não deve vir acompanhada da ideia de querer pressionar ou forçar Deus a agir de uma certa maneira. A verdadeira oração do cristão nasce de uma profunda confiança em Deus, que conhece a necessidade do ser humano” (Anselm Grun, “Jesus, mestre da salvação”) .

 



[1] A noção grega de hipócrita designa, em si, o ator. Para o judeu piedoso, porém, o ator grego que interpreta, por exemplo, um deus mitológico e, portanto, exibe uma imagem de Deus ou representa a divindade faz algo ímpio. Uma vez que ele ainda busca também aplauso e, portanto, sua própria glória, no lugar da divindade, põe imediatamente no lugar de Deus. Mas quem ‘age como hipócrita’ em sua beneficência porque a realiza publicamente não representa nenhum papel; ao contrário, mostra a todo mundo quem ele próprio é, ou seja, uma pessoa ambiciosa e egoísta. Com isso ele desperdiça a recompensa do amor, da qual francamente não é digno de forma alguma.  

[2] Naturalmente, é possível – hoje como antigamente – que se desperte nos orantes cristãos a agradável sensação de ser visto como um orante mergulhado em si mesmo e de suscitar admiração. Com isso, porém, perde-se o verdadeiro interlocutor quando, na oração, se olha de soslaio para outra pessoa, fazendo dela, de certa forma, o destinatário de sua oração. De fato, o orante já mereceu sua recompensa, sem precisar de Deus, pois a admiração conseguida obtida mediante as pessoas frustra o reconhecimento de Deus e produz apenas vaidade. Se a publicidade é buscada conscientemente ou não, existe sempre o perigo de desconhecer a verdadeira essência da oração.

[3] Pode ser que a alusão de Mt ao quarto traga a dolorosa lembrança do Templo já destruído pelos romanos, até mesmo certa crítica à pretensão do Templo de Jerusalém de ser o único lugar da presença de Deus no mundo durante a época precedente à guerra judeu-romana. Mais tarde o evangelho do Jo retoma o problema sob outro ângulo, na cena da samaritana na pergunta sobre o lugar legítimo da adoração. Jesus deixa entrever que os lugares de adoração são acidentais. Não se trata mais de templo, catedrais ou despensas, mas daquela oração em ‘espírito e verdade’, que compreende Deus como o mistério fascinante e terrível e apresenta-lhe a mais profunda dedicação do coração! Não é nenhum mistério que o retrair-se à oração não impede a pessoa, perante Deus, gravitar de novo sobre si mesma. A segunda instrução, porém, visa a resistir à tentação de o orante querer diante de si mesmo e dos outros, sentir-se como modelo do orante, em vez de levar a sério Deus como Deus e a ele somente dedicar toda honra e adoração, e agradecer-lhe por sua imensa glória.

[4] Uma face radiante é expressão de alegria. O jejum proporciona realmente tanta alegria? Os discípulos de Jesus não jejuavam (9,14-15) porque a presença de Jesus entre eles exprimia um tempo das núpcias escatológicas, tempo da alegria nupcial. Jesus é o Deus conosco! O jejum como sinal do afastar-se das exigências do instinto de conservação é, portanto, ao mesmo tempo um sinal de voltar-se para aquele Deus que mantém a vida dos maus e dos bons, e promete a vida eterna, ou seja, promete a si mesmo, com isso, o jejum é sinal da festa. A prática pós pascal do jejum aponta para a ambivalência de nossa situação atual: a Igreja já é a comunidade declarada por Deus bem aventurada, luz do mundo e cidade sobre o monte; ao mesmo tempo, porém, ainda está sempre a caminho das núpcias celestiais e, por conseguinte, carece sempre de novo da conversão a seu Senhor, o ‘Deus conosco’. Disso é que o jejum, dirigido totalmente ao Pai absconso e determinado por seu segredo, deve ser sinal.


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