SOLENIDADES, FESTAS E MEMÓRIAS MARIANAS NO ANO LITÚRGICO*

* Síntese baseada no livro “Maria na Igreja em Oração”, de Corrado Maggioni, Paulus, 1998. 

 

Introdução: Antes do concílio Vat. II era comum ouvir como refrão o slongan “de Maria nunca se fala suficientemente”. Nascia daí um desafio a quem criava as tiradas mais geniais, os paradoxos mais ousados, as expressões mais floreadas, para exaltar as grandezas de Maria. E se às vezes fosse possível encontrar por acaso alguma pérola de inteligência teológica e espiritual e algum lampejo de poesia, não poucas vezes, porém, deparava-se com banalidades, exageros e extravagâncias que causavam embaraços, para além do bom gosto e da ortodoxia. Uma extravagância fora de qualquer dúvida era aquela em que alguém havia planejado um calendário com uma festa mariana para cada dia do ano, sem se preocupar minimamente não só com o ano litúrgico, mas também com o bom senso da fé.

            Um pároco que queira trabalhar por um sadio crescimento da própria comunidade na fé cristã, com certeza encontra no amor à Mãe do Senhor um poderoso meio. A devoção mariana não leva a Jesus sempre e simplesmente. É necessário que ela proceda da fé verdadeira, isto é, alimentada substancialmente, celebrada adequadamente, por fim concretizada na caridade de modo coerente. Aos sacerdotes se poderia perguntar: Qual é o nutrimento que damos à piedade mariana dos fiéis? Com que freqüência, em vez de alimento sólido e substanciosos da palavra de Deus, das orações litúrgicas, dos escritos dos Padres e dos autores espirituais mais conceituados, oferecemos, para a refeição do nosso povo, somente guloseimas insípidas e inverossímeis?

            João Paulo II procurou dar à prática do Rosário a verdadeira ligação entre os grandes mistérios da nossa salvação, a fé de Maria e a nossa. Temos a prática das romarias sem conta a “lugares santos” verdadeiros ou supostos. Qual o fundamento, o conteúdo, a nutrição da espiritualidade destas romarias? Em muitas peregrinações de devoção e oração, mais que buscar inspiração na palavra de Deus, as pessoas se inspiram em “mensagens” que merecem até grande consideração, mas, mesmo na melhor das hipóteses, jamais poderão acrescentar algo à revelação autêntica que é o evangelho. Temos ainda as festas marianas, que gozam de grande aceitação e freqüentemente são celebradas com solenidades espetaculares, na maioria das vezes de cunho local, que fazem referência a acontecimentos extra-bíblicos, graciosos e delicados não se pode negar, mas não diretamente ligados ao mistério pascal. Podemos com honestidade perguntar se as próprias solenidades dogmáticas da Imaculada e da Assunção foram sempre entendidas na sua estreita conexão com o mistério da Encarnação, a primeira, e com a Ressurreição e a Ascensão de Cristo, a outra.

            Em palavras simples, que ligação o nosso povo faz e é ajudado a fazer entre a existência de Maria e a existência salvífica de Cristo? Entre as festas marianas e o ano litúrgico? E como as festas marianas podem favorecer a compreensão cada vez maior do mistério de Cristo nascido, morto e ressuscitado por nós? Estas, ou semelhantes, são as interrogações da pastoral que diz respeito à piedade mariana. E não se trata de questões de pouco valor. Está em jogo a autêntica eficácia da devoção a Maria como caminho para encontrar Cristo Senhor.

 

1. O culto à bem-aventurada Virgem Maria. O culto mariano tem início com o próprio culto cristão por causa da necessária referência a Maria exigida pelo mistério histórico e litúrgico de Jesus Cristo. É certo que não temos documentação além de alguns simples, mas importantes indícios, a começar pelas páginas do NT. As expressões evangélicas referentes a Maria foram retomadas de modo variado em orações, antífonas, responsórios, hinos, que atravessaram a piedade litúrgica mariana da Igreja, tanto no Oriente, quanto no Ocidente. Pode-se, pois, com razão pensar que à revelação do Deus feito homem contida nos evangelhos e ao conhecimento de Maria por parte dos primeiros discípulos do Senhor, tenha correspondido, desde sempre, no ato de fazer memória litúrgica dos mistérios de Cristo, certa comemoração também de sua Virgem Mãe.

            A recordação mais antiga de Maria vem das celebrações pascais. Na sua homilia sobre a Páscoa, Melitão de Sardes (+ 180) é o primeiro, em contexto litúrgico, a testemunhar como os mistérios da encarnação-paixão-glória de Cristo são momentos da única economia celebrada pela Igreja, que envolve também a maternidade da Virgem. Tem excepcional importância a oração mariana do Sub tuum praesidum, escrita em grego num papiro egípcio que remonta ao sec. III: nessa oração, bem antes do solene pronunciamento de Éfeso (431), Maria é invocada com o título de “Mãe de Deus”.

            No séc. IV, a consolidação da festividade do Natal do Senhor – precedida, conforme os lugares, por um período de preparação iluminada pelos mistérios da Anunciação e visitação – constitui o núcleo do florescimento cultual para com a Mãe do Senhor. Pelos textos litúrgicos que chegaram até nós, deduz-se claramente que o Natal de Cristo é, ao mesmo tempo, a primordial festa em honra de Maria. De resto os Padres dos primeiros séculos, refletindo sobre a encarnação, demonstram compreender que a pessoa de Cristo e da Virgem são inseparáveis.

            Aos poucos, em momentos preponderantemente fecundos da organização do ciclo litúrgico anual, surgiram e se desenvolveram, de uma Igreja a outra, festividades expressamente marianas. No séc. VII a Igreja de Roma introduziu as quatro festas, provindas do Oriente, que durante séculos representaram os fulcros da piedade eclesial para com Maria: a Apresentação (2 de fevereiro), a Anunciação (25 de março), a Assunção (15 de agosto) e a Natividade (8 de setembro). Os dogmas marianos, amadurecidos no meio das grandes controvérsias cristológicas e mariológicas, encontraram na liturgia o seu ponto de ancoragem e a sua caixa de ressonância (por exemplo, virgindade e maternidade divina), ou então o seu campo de verificação e de promoção (por exemplo, imaculada, assunção). Foi levando em conta as tradições rituais das Igrejas, a extensão das celebrações locais, as figuras carismáticas em acentuada doutrina mariana, os pronunciamentos de concílios ou dos Pontífices romanos, os movimentos de devoção a um aspecto particular do mistério de Maria, que a liturgia se enriqueceu ao longo do tempo com as celebrações que hoje conhecemos.

 

2. Horizonte teológico-litúrgico do culto mariano. Se a piedade mariana pertence à Igreja desde a antiguidade, somente em tempos relativamente recentes a reflexão teológica a respeito da veneração de Maria na celebração do mistério de Cristo encontrou significativa expressão. Isso foi sublinhado por Paulo VI no Discurso de encerramento da III sessão do concílio Vat. II: “É a primeira vez (...) que um concílio ecumênico apresenta uma síntese tão vasta da doutrina católica no que concerne ao lugar que Maria santíssima ocupa no mistério de Cristo e da Igreja”. Essa ponderação conciliar encontrou a sua correspondente repercussão na oração litúrgica (revisão do Calendário e dos livros litúrgicos).

            O concílio Vat. II recentralizou o culto mariano sobre o mistério de Cristo celebrado na liturgia. E a reforma litúrgica que daí derivou recebeu e traduziu em oração a renovada compreensão conciliar do mistério de Maria na história da salvação. A primeira fonte onde captar o horizonte teológico-litúrgico do culto mariano são, portanto, os livros litúrgicos: o Missal, o Lecionário, os Rituais dos sacramentos, a Liturgia das Horas, a Coletânea de Missas de Nossa Senhora (publicada em 1987). Não faltaram, naqueles anos após o concílio, numerosos estudos sobre Maria na liturgia, aprofundando conteúdos e implicações que emergiam dos textos bíblicos e de orações, como da própria dinâmica da celebração eclesial. A conclusão que se deduz daí pode ser resumida na afirmação de que os livros litúrgicos são uma fonte importante da espiritualidade mariana da Igreja.

            O culto à Mãe do Senhor se insere, pois, conforme o modo que lhe é peculiar, na dinâmica teológica que caracteriza a liturgia como ação de Cristo e da Igreja (cf. Sacrossanctum Concilium (SC) n. 07). Sob esta ótica, a consideração de Maria no contexto litúrgico está imbuída da relação com os mistérios de Cristo e da Igreja, como foi ressaltado pelo breve, mas intenso texto conciliar da SC n. 103, explicado, nos seus conteúdos litúrgicos implícitos, pela exortação apostólica de Paulo VI, Marialis cultus (MC), principalmente nn. 1-23, redigida à luz da rica doutrina mariológica do cap. VII da Lumem gentium (LG), nn. 52.55-59.66. Ulterior descrição das coordenadas acerca de Maria e a liturgia encontra-se na Introdução à Coletânea de Missas de Nossa Senhora e ao correspondente Lecionário. Útil, enfim, sobretudo do ponto de vista pastoral, a Carta da Congregação para o Culto Divino Orientações e propostas para a celebração do ano mariano (OPCAM). Finalmente, os dados fundamentais sobre o culto mariano emergentes dos documentos recém-citados aparecem no Catecismo da Igreja Católica (CIC) (cf. nn. 1172, 1370, 2617-2619, 2673-2679).

            O vínculo indissolúvel que une Maria a Cristo, seu Filho e nosso Redentor, é, portanto, o primeiro e fundamental critério com que se exprime a veneração eclesial a Maria. À luz dos mistérios da vida de Cristo professamos no Símbolo – credo – (encarnado por nós homens e pela nossa salvação, crucificado e ressuscitado, esperado no último dia) a Igreja crê na Virgem Maria, celebra-a e imita suas virtudes. O culto da Mãe do Senhor dá início assim, por um lado, à contemplação da economia salvífica realizada pelo Pai, por meio do seu Filho, no poder do Espírito Santo e, por outro, à compreensão de que a existência humana de Maria de Nazaré se apresenta como paradigma para a antropologia cristã (a humanidade diante de Deus).

            O segundo iniludível critério que sustenta a piedade litúrgica para com a Virgem é constituído pelo horizonte eclesiológico. Mãe e filha da Igreja, sua figura e modelo, Maria é a primícia e ao mesmo tempo o ícone perfeito da comunidade dos redimidos; esse nexo tipológico e vital aplica-se à Igreja, considerada tanto no seu conjunto como em cada um dos seus membros, pois em Maria refulge a condição do perfeito discípulo de Cristo, que todo cristão é chamado a reproduzir na própria vida.

            As categorias que, em nível celebrativo, ilustram a relação Maria-Igreja podem ser resumidas na comunhão e na exemplaridade: a assembléia litúrgica experimenta que na própria oração revive a oração de Maria, e imita sua atitude interior. Com e como Maria, a Igreja crê, espera, ama, celebra, vive o mistério de Cristo, rumo à plena participação do Reino dos céus.

            A essência pode ser resumida dando-se realce à memória (louvor, invocação, imitação, comunhão) de Maria no memorial dos mistérios de Cristo, celebrados com vistas ao mistério da Igreja. Em virtude da presença viva de Maria nos mistérios históricos da vida de Cristo, ela é reconhecida presente também na atuação litúrgica daqueles mesmos mistérios, que a viram como protagonista e sócia, perenemente celebrados a fim de que os fiéis vivam em-com-por Cristo, a fim de que o corpo eclesial seja edificado conforme a própria vocação-missão. Atualizando a obra de Cristo, a ação litúrgica dá origem e alimenta incessantemente o mistério da comunhão “Cristo-Igreja”: nele resplandece o lugar de Maria. Em âmbito litúrgico, de fato, a piedade mariana não corre o risco de mariolatria, já que não se propõe uma mariologia separada do mistério de Deus, um culto mariano desligado do culto cristão: a relação Igreja-Maria que emerge da celebração está inserida na relação fundamental Trindade-Igreja.

 

3. A Virgem Mãe no ano litúrgico e nos sacramentos/sacramentais. Com relação ao que expusemos até aqui, um dado conseqüente que permeia a piedade mariana é representado pela celebração do ano litúrgico: “Na celebração... do ciclo anual dos mistérios de Cristo, a santa Igreja venera com especial amor a bem-aventurada Maria Mãe de Deus, unida indissoluvelmente à obra salvífica do seu Filho; em Maria admira e exalta o mais excelso fruto da redenção e contempla com alegria, como em puríssima imagem, o que ela deseja e espera ser” (SC 103). Sob esta luz foi revisto o Calendário, e isto “permitiu que nele fosse inserida, de maneira mais orgânica e com ligação mais íntima, a Memória da Mãe no ciclo anual dos mistérios do Filho” (MC 2).

            A vida e a missão de Maria na história da nossa salvação resplandecem em toda a sua riqueza nas liturgias das solenidades, festas e memórias a ela expressamente dedicadas ao longo do ano. Mas a recordação dela não se limita apenas a essas comemorações marianas. Também nos demais sacramentos, sem transformá-los em celebrações marianas, os textos litúrgicos deixam transparecer ou acentuam algumas ressonâncias marianas, provenientes do próprio núcleo do sacramento, diretamente ou por analogia.

            Os nexos explícitos ou evocativos que se encontram em cada sacramento e na liturgia das Horas, acenamos, por exemplo, que o Lecionário do matrimônio e da profissão religiosa-consagração virginal propõe trechos evangélicos referentes a Maria, e que nas Vésperas todos os dias a Igreja canta o Magnificat em comunhão com Maria e seu exemplo.

            A Eucaristia evoca inefavelmente a Virgem Mãe, pois “do seio virginal da Filha de Sião germinou aquele que nos nutre com o pão dos anjos” (Prefácio do Advento II/A). Desde a antiguidade, de fato, a bem-aventurada Virgem Maria é lembrada e invocada na Oração que se encontra no coração da celebração eucarística; e isso “não se deve a fatores históricos ou contingentes, mas brota de uma necessidade interior: sendo a eucaristia celebração plena dos mistérios salvíficos que Deus realizou por Cristo no Espírito, não pode não lembrar a bem-aventurada santa Mãe do Salvador, que esteve indissoluvelmente unida a esses mistérios” (OPCAM 19).

            O conhecimento da eucologia (conjunto das orações) favorecerá o homiliasta (aquele que faz a homilia, reflexão) na tarefa de ajudar os fiéis a fazer exegese existencial da Palavra proclamada na assembléia, justamente a exemplo da Mãe do Senhor (cf. Lc 2,19.51). Uma homilia sobre a bem-aventurada Virgem que, “sem esse norteamento vital acabasse num simples, embora enfeitado encômio, concorreria para alimentar aquele ‘estéril e efêmero sentimentalismo’, desaprovado pelo concílio Vat. II, que insidia constantemente a piedade mariana” (OPCAM 17).

            Tendo como base o evangelho, em cuja luz brilham com tonalidades marianas também as páginas do AT (esquema anúncio-cumprimento ou exegese tipológica) e da oração eclesial, a homilia sobre a Virgem Maria fará transparecer atitudes celebrativas como: memória, experiência, contemplação, louvor, comunhão, imitação, compromisso. 

            Visto que estamos tratando de culto, é necessário ao menos um aceno à chamada piedade popular (também a liturgia é e deve ser do povo). O fato de que a liturgia seja “ápice e fonte” da vida da Igreja (SC 10), não tira espaço de práticas de piedade ou devoções marianas que foram e são objetos de grandes considerações entre os fiéis.

            A harmonização com a liturgia não significa transformar em expressões litúrgicas (ou pior, em hibridismo e superposições) as manifestações da piedade popular (cf. OPCAM 69-72), mas a necessária concordância na diferença-complementariedade dos campos. É indispensável que os conteúdos e formas da piedade popular (novenas, tríduos) estejam modulados conforme as Notas e as Orientações já ilustradas magistralmente por Paulo VI em MC 24-39. Uma renovada pregação-catequese mariana constitui um momento privilegiado para a promoção, quer dos valores incontestáveis contidos em várias formas de piedade (religiosidade) popular, quer da sua necessidade de evangelização-purificação (cf. OPCAM 66-68; CIC 1674-1676).

            Nessa linha, também as celebrações dos “meses marianos” – que independem do ciclo litúrgico – devem sabiamente ser sintonizadas e renovadas à luz da liturgia. Por exemplo, o mês de maio deve estar em harmonia com o tempo pascal com o qual coincide, pondo em destaque sobretudo a participação de Maria no mistério pascal-pentecostal de Cristo e da Igreja; as homilias do mês de maio não podem ser deturpadas por comodismo pelo tradicional “pensamento mariano” (cf. OPCAM 64-65).

 

5. As celebrações marianas.

Solenidades: Imaculada Conceição da Bem-aventurada Virgem Maria (8 de dezembro); Maria Santíssima Mãe de Deus (1º de janeiro); Anunciação do Senhor (25 de março); Assunção da Bem-aventurada Virgem Maria (15 de agosto); Nossa Senhora da Conceição Aparecida (Brasil – 12 de outubro).

Festas: Apresentação do Senhor (2 de fevereiro); Visitação da Bem-aventurada Virgem Maria (31 de maio); Bem-aventurada Maria Virgem do Monte Carmelo (16 de julho); Natividade da Bem-aventurada Virgem Maria (8 de setembro); Nossa Senhora de Guadalupe (América Latina – 12 de dezembro).

Memórias: Bem-aventurada Virgem Maria de Lourdes (11 de fevereiro); Imaculado Coração da Bem-aventurada Virgem Maria (sábado após o Sagrado Coração de Jesus); Dedicação da Basílica de Santa Maria Maior (5 de agosto); Bem-aventurada Virgem Maria Rainha (22 de agosto); Nossa Senhora das Dores (15 de setembro); Nossa Senhora do Rosário (7 de outubro); Apresentação de Nossa Senhora (21 de novembro).

 

Sobre o Rosário da Virgem Maria*


* Uma síntese da Carta de João Paulo II

 

O rosário de ave-marias deriva do rosário de pai-nossos. Este último foi introduzido, provavelmente, por S. Bento; monges pouco letrados, que não conseguiam recitar os 150 salmos em latim, rezavam em substituição 150 pai-nossos. Para se facilitar a contagem, se usavam grãos enfiados em um cordão. A implantação definitiva se deu com o Papa Pio V. Os papas posteriores como Leão XIII, Pio X e Pio XI estimularam enormemente a devoção, confirmada mais e mais pelas aparições da Virgem em Lourdes e Fátima, trazendo em suas mãos um rosário pendente[1].

 

Carta Apostólica “Rosarium Virginis Marie

 

Ao episcopado, ao clero e aos fiéis, sobre o Rosário

 

Introdução:

1. O rosário, por inspiração do Espírito Santo, se foi formando gradualmente no II milênio. Oração amada por vários santos e estimulada pelo magistério. De origem ocidental e meditativa. Ainda que caracterizado por uma fisionomia Mariana, em seu âmago é uma oração cristológica: concentra a profundidade de toda a mensagem evangélica.

2. Esta carta celebra os 120 anos do primeiro documento do magistério a tratar da importância do Rosário: Leão XIII (Supremi apostolatus Officio – 1883): indica-o como instrumento espiritual eficaz contra os males da sociedade. Outro pontífice, Paulo VI (Marialis cultus), destaca o caráter evangélico do rosário e sua orientação cristológica.

Testemunho pessoal: “O rosário acompanhou-me nos momentos de alegria e nas provações. A ele confiei tantas preocupações; nele encontrei sempre conforto”.

3. Proclamação do Ano do Rosário: outubro de 2002 a outubro de 2003. Na linha da reflexão oferecida na NMI, a partir de Cristo, oferece uma “reflexão sobre o rosário, uma coroação Mariana a referida carta apostólica, para exortar à contemplação do rosto de Cristo na companhia e na escola de sua Mãe Santíssima”. A carta é uma indicação pastoral à iniciativa das diversas comunidades eclesiais: “O rosário, quando descoberto em seu pleno significado, conduz ao âmago da vida cristã, oferecendo uma ordinária e fecunda oportunidade espiritual e pedagógica para a contemplação pessoal, a formação do povo de Deus e a nova evangelização”.

4. É notória certa crise desta oração, com risco de debilitar seu valor e de não propor às novas gerações. Ela não se opõe à liturgia, mas serve-lhe de apoio. Devidamente compreendido, não é um obstáculo ao ecumenismo.

5. É um caminho de contemplação do mistério cristão, nesta nova exigência de espiritualidade: é a melhor e mais garantida tradição da contemplação.

6. Um excelente instrumento de oração pela paz e pela família, duas realidades constantemente ameaçadas. “O relançamento do Rosário nas famílias cristãs, no âmbito de uma pastoral mais ampla da família, propõe-se como ajuda eficaz para conter os efeitos devastadores desta crise de nossa época”.

7. “Eis a tua Mãe” – Lurdes e Fátima são manifestações de um cuidado maternal confiado pelo Redentor.

8. Vários santos se destacaram pelo estímulo à devoção do rosário: São Luis Maria Grignion de Monfort, padre Pio, beato Bartolo Longo...

 

Capítulo I: Contemplar Cristo com Maria.

9. A cena da Transfiguração de Jesus, tomada como ícone da contemplação cristã, convida-nos a “fixar os olhos no rosto de Cristo, reconhecer o mistério no caminho ordinário e doloroso de sua humanidade, até perceber o brilho divino definitivamente manifestado no ressuscitado glorificado à direita do Pai, é tarefa de cada discípulo de Cristo; e por conseguinte também nossa tarefa”.

10. A contemplação de Cristo tem em Maria seu modelo insuperável. Os seus olhos já o contemplam desde a Anunciação, concebendo-o no coração e na carne, seu olhar, cheio sempre de reverente estupor, não se separará mais dele. Um olhar às vezes interrogativo (Lc 2,48), penetrante (Jo 2,5), doloroso (Jo 19,26-27), ardoroso (At 1,14).

11. “As recordações de Jesus, estampadas em sua alma, acompanharam-na em cada circunstância, levando-a a percorrer novamente com os pensamentos os vários momentos de sua vida junto com o Filho. Foram estas recordações que constituíram, de certo modo, o ‘rosário’ que ela mesma recitou constantemente nos dias de sua vida terrena”. Quando recita o rosário, a comunidade cristã sintoniza-se com a lembrança e com o olhar de Maria.

12. O rosário, precisamente a partir de Maria, é uma oração marcadamente contemplativa. Privado desta dimensão, perde seu sentido, tornando-se uma repetição mecânica de fórmulas.

13. O contemplar de Maria é sobretudo um recordar, no sentido bíblico de atualização: o hoje da salvação

14. Em sua “peregrinação da fé”, aprendeu quem é Cristo, tornando-se mestra nesse seguimento e na obediência da fé: “Eis a serva do Senhor, faça-se me mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38).

15. A espiritualidade cristã tem como caráter qualificador o configurar-se a Cristo. O rosário nos introduz de modo natural na vida de Cristo e como que nos faz “respirar” seus sentimentos. Nesse processo de configuração, confiamo-nos à ação maternal da Virgem Santa. Maria só vive em Cristo e em função de Cristo!

16. Na recomendada oração de súplica ao Pai (Mt 7,7), Maria intervem com sua materna intercessão. O Rosário é ao mesmo tempo meditação e súplica: “ao ser suplicada por nós, apresenta-se em nosso favor diante do Pai que a cumulou de graça e do Filho nascido de suas entranhas, pedindo conosco e por nós”.

17. O rosário é também um itinerário de anúncio e aprofundamento no mistério de Cristo. Este conserva toda a sua força e permanece um recurso não negligenciável na bagagem pastoral de todo bom evangelizador.

 

Capítulo II: Mistério de Cristo – Mistério da Mãe

18. O rosário é um compêndio do Evangelho e nos permite contemplar o rosto de Cristo.

19. O rosário aponta só alguns mistérios de Cristo, consolidados pela Tradição. Para intensificar a densidade cristológica do mesmo, seria oportuno abraçar também os mistérios da vida pública de Cristo entre o batismo e a paixão, “deixada à livre valorização de cada pessoa e das comunidades”. É nos anos da vida pública que o mistério de Cristo se mostra de forma especial como mistério de luz (Jo 9,5). A inserção desses mistérios plenifica a consideração do rosário como “compêndio do Evangelho”. “Esta inserção de novos mistérios, sem prejudicar nenhum aspecto essencial do esquema tradicional desta oração, visa fazer viver com renovado interesse na espiritualidade cristã, como verdadeira introdução na profundidade do coração de Cristo, abismo de alegria e de luz, de dor e de glória”.

20. Mistérios da alegria (gozosos): a alegria que irradia do acontecimento da encarnação.

21. Mistérios da Luz – vida pública de Jesus – 1o O Batismo no Jordão; 2o a auto revelação nas bodas de Cana; 3o o anúncio do Reino de Deus com o convite à conversão; 4o a transfiguração; 5o a instituição da Eucaristia. Todo o mistério de Cristo é luz (Jo 8,12), que emerge particularmente em sua vida pública.

22. Mistérios da dor: levam o crente a reviver a morte de Jesus pondo-se aos pés da cruz junto de Maria.

23. Mistérios da glória: a contemplação não pode deter-se na imagem do crucificado. Ele é o ressuscitado.

24. Esse ciclo meditativo conduz ao essencial, no conhecimento de Cristo. O nosso “avançar” consiste também em sempre mais aprofundar o mistério de Cristo. O rosário coloca-se a serviço desse ideal, é o caminho de Maria, de silêncio e escuta. Os mistérios de Cristo são também, de certo modo, de sua Mãe, mesmo quando não diretamente envolvida, pelo fato de viver dele e para ele.

25. Implicação antropológica do rosário: “Quem contempla a Cristo, percorrendo as etapas de sua vida, não pode deixar de aprender dele a verdade sobre o homem”. “Verdadeiramente o rosário ‘marca o ritmo da vida humana’ para harmoniza-la com o ritmo da vida divina, na gozosa comunhão da Santíssima Trindade, destino e aspiração da nossa existência”.

 

Capítulo III: “Para mim, viver é Cristo”.

26-28. O método baseado na repetição e na meditação dos mistérios de Cristo, favorece a assimilação dos mesmos. Um amor que não se cansa de voltar à pessoa amada com efusões que, apesar de semelhantes na sua manifestação, são sempre novas pelo sentimento que permeia. Um método válido e que, todavia, pode ser melhorado. É necessário compreende-lo para que não se torne um amuleto ou objeto mágico.

29-38. As partes e dinâmica do rosário: A enunciação do mistério (orientar a imaginação e o espírito para aquele episódio da vida de Jesus); esta enunciação poderia ser acompanhada da proclamação da passagem bíblica alusiva: “deixar Deus falar”. É conveniente que se guarde um breve momento de silêncio após a enunciação, para depois se elevar o espírito ao Pai (Pai-nosso). Em cada mistério Jesus nos leva ao Pai. As ave-maria, mesmo se em maior quantidade, não se opõe ao cristológico. O centro de gravidade da ave-maria, uma espécie de dobradiça entre a primeira e a segunda parte, é o nome de Jesus. O “glória ao Pai”: a doxologia trinitária é meta da contemplação cristã. A jaculatória final varia segundo o costume. O terço, em seu caráter simbólico, converge para o crucificado e recorda-nos o vínculo de comunhão e fraternidade que a todos nos une a Cristo. São vários os modos de introdução e conclusão do rosário. Rezado todo em um dia ou distribuído num ciclo semanal, o rosário seja visto e sentido como itinerário contemplativo.

Conclusão: (39-43). Reconhecendo com a Igreja a eficácia do Rosário, o Papa confia a esta oração a causa da paz do mundo e a causa da família. Uma oração tão fácil, e ao mesmo tempo tão rica, merece verdadeiramente ser redescoberta pela comunidade cristã.

                                                                              João Paulo II, outubro de 2002 – 25o ano de Pontificado 



[1] Em outubro de 2002 o Papa João Paulo II sugere a inserção dos mistérios luminosos (vida pública de Jesus), para dar uma expressão ainda maior do rosário como “compêndio do evangelho”, de uma oração também cristológica.


Clique aqui e confira na íntegra a Carta Apostólica Rosarium Virginis Mariae, de João Paulo II.

A Ave-Maria


A oração traduz a suprema expressão da fé viva. Pela oração, a pessoa deixa, como que atrás de si, o universo de todas as coisas e busca uma relação com “Supremo”. A oração da ave-maria, tão profundamente assimilada, juntamente com o pai-nosso, à piedade diuturna dos cristãos desde os primeiros balbucios das crianças, encerra todas as riquezas do mistério de Deus em Maria. As frases são simples, mas escondem o dom de Deus que, na história de sua autocomunicação aos homens, nunca busca os caminhos escarpados e o emaranhado das muitas palavras. Na breve oração da ave-maria se cristalizou a memória coletiva dos cristãos. Com sua recitação trazemos à tona da consciência, do louvor e da petição aquilo que se passa no nível do mistério. Em Maria contemplamos, admirados, uma série de intervenções divinas que a colocam no centro da vontade autocomunicadora de Deus.

            A oração da ave-maria é composta de três partes: a primeira é tirada da saudação do anjo Gabriel: “Ave, Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco” (Lc 1,28); a segunda é tomada do louvor que Isabel faz a Maria: “bendito é o fruto do vosso ventre” (Lc 1,42); a terceira parte é uma invocação da Igreja, de origem bem posterior: “Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte, amém”. Foi necessário um milênio, do século VI-XVI, para que se chegasse à fixação atual da ave-maria. Sua história, como de quase todas as grandes orações populares da Igreja, é cheia de ziguezagues não se sabendo exatamente seus inícios. É semelhante à devoção a Maria: inicialmente se parece à insignificância de um pequeno córrego; lentamente vai se avolumando até terminar num caudal amazônico, expressão do grandioso sentido da fé.

            Da piedade popular livre se passa às prescrições obrigatórias pelos sínodos episcopais. O bispo de Paris Odon, no sínodo de 1198 prescreve a ave-maria com a mesma obrigação que o pai-nosso e o credo. O acréscimo “Jesus” ao “bendito fruto do vosso ventre” se atribui ao Papa Urbano IV (1261-1264). A terceira parte, a invocação da Igreja, “Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós...” conheceu primeiramente várias fórmulas. A fórmula que persiste até hoje foi fixada por Pio V em 1568 por ocasião da reforma litúrgica.

            A ave-maria esta ainda associada ao “ângelus”, costume conservado ainda em muitos paises e, entre nós, em cidades menores e do interior. Três vezes ao dia, de manhã, ao meio dia e a tardezinha, por volta das 18 horas, costuma-se tocar o sino e se recitar três vezes a ave-maria.

            A recitação da ave-maria encontrou seu contexto melhor no rosário. Este é composto de 150 ave-marias; cada dez são intercaladas por um Pai-nosso e um glória ao Pai, em cada dezena se enuncia um mistério de nossa redenção e libertação. Normalmente se recita a terça parte do rosário, vale dizer, 50 ave-marias com cinco glória ao Pai.

            O rosário de ave-marias deriva do rosário de pai-nossos. Este último foi introduzido, provavelmente, por S. Bento; monges pouco letrados, que não conseguiam recitar os 150 salmos em latim, rezavam em substituição 150 pai-nossos. Para se facilitar a contagem, se usavam grãos enfiados em um cordão. A implantação definitiva se deu com o Papa Pio V. Os papas posteriores como Leão XIII, Pio X e Pio XI estimularam enormemente a devoção, confirmada mais e mais pelas aparições da Virgem em Lourdes e Fátima, trazendo em suas mãos um rosário pendente[1].

            A estrutura da ave-maria é muito elucidativa de toda verdadeira oração cristã. O 1o impulso arranca para o céu em hino de louvor: canta a gesta (ação) de Deus feita em Maria. Embora a referência seja Mariana, o centro, entretanto, é ocupado por Deus, autor das maravilhas operadas na bendita entre as mulheres. A segunda parte toma em conta a tragédia humana onde há pecado e morte. Pedimos socorro.É a consciência de nossa fragilidade e incapacidades salvífica. Nisso tudo não vai nenhuma amargura ou ressentimento; a situação decadente é assumida à luz de Deus e de Maria; entregamo-nos, confiados, porque pudemos antes louvar e agradecer. O Deus que tão eficazmente agira em Maria, como não iria ter misericórdia de seus filhos pecadores e condenados à morte? Por isso terminamos com um firme e consolador amém. Poder dizer amém supõe reconhecer o senhorio soberano de Deus. Tudo o que Ele faz, está bem feito, apesar dos caminhos tortuosos e das fadigas de nossa compreensão. Nosso amém terreno no final da ave-maria se une ao Amém de Deus e faz eco ao Amém da nossa grande e bondosa Mãe do céu. Amém!

                                                (Fonte: “A Ave-Maria – o feminino e o Espírito Santo” – Leonardo Boff – Editora Vozes.)



[1] Em outubro de 2002 o Papa João Paulo II sugere a inserção dos mistérios luminosos (vida pública de Jesus), para dar uma expressão ainda maior do rosário como “compêndio do evangelho”, de uma oração também cristológica.