O Primeiro Mandamento[i]

 


“Eu sou o Senhor teu Deus, que te fez sair do Egito, da casa da escravidão. Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem esculpida de nada que se assemelhe ao que existe lá em cima, nos céus, ou embaixo na terra, ou nas águas que estão debaixo da terra. Não te prostrarás diante desses deuses e não os servirás” (Ex 20,2-5)

Está escrito: “Ao Senhor teu Deus adorarás e só a ele prestarás culto”. Mt 4,10

 

O ser humano foi criado para ser feliz com Deus. Mas a felicidade é uma razão secundária do nosso existir, pois existimos primeiro para glorificar a Deus. E essa nossa obrigação já aparece no primeiro mandamento. Eu sou o Senhor teu Deus, escreveu Deus nas tábuas de pedra de Moisés. Não terás outros deuses diante de minha face. É uma forma resumida do primeiro mandamento que tal como aparece no livro do Êxodo (20,2-6) é bem longo.

Podemos dizer que poucos de nós se acham em situação de cometer um pecado de idolatria em sentido literal. Mas já se poderia falar figurativamente daqueles que rendem culto ao falso deus de si mesmo: aos que colocam as riquezas, os negócios, o êxito social, o prazer mundano ou o bem-estar físico acima de seus deveres para com Deus. No entanto, esses pecados de autoidolatria enquadram-se, em geral, em mandamentos diferentes do primeiro.

Mas o nosso olhar é para o seu significado positivo. O primeiro mandamento ordena que ofereçamos unicamente a Deus o culto supremo, culto que lhe é devido como Criador e fim nosso, e essa obrigação positiva abrange muito mais coisas do que a mera abstenção da idolatria. Assim, não basta passar diante de um ídolo pagão e não tirar o chapéu; devemos prestar ativamente ao verdadeiro Deus o culto que lhe é devido: CIC 2085-6.

Num primeiro olhar está a virtude da fé, sem ela não há nada. Esta exige, para continuar sendo fé, atos de fé. Acolhemos as verdades reveladas, mesmo sem as compreendermos plenamente, pois Deus é infinitamente verdadeiro, não pode mentir. Quando digo que “creio”, estamos honrando a Sabedoria e a Veracidade infinitas de Deus do modo mais prático possível, aceitando-as com base na sua palavra.

Conhecer certas verdades converte-se numa responsabilidade para nós, segundo nossa capacidade e oportunidades. Para um não católico, o reconhecimento da Igreja católica como verdadeira implica num passo em aderir a essa verdade, que pode encontrar muitos obstáculos. Às vezes, o obstáculo é o temor de desgostar os pais segundo a carne, como se a lealdade para com eles tivesse precedência sobre essa lealdade superior que devemos ao nosso Pai Deus.

Os que já possuem a fé têm que se perguntar se não se acomodaram na sua busca de conhecimento de Deus e da religião. Uma mente adulta necessita se uma compreensão de adulto das verdades divinas. Ouvir com atenção homilias e palestras, ler livros e revistas de doutrina cristã, participar de cursos ou círculos de estudo sobre temas de fé e de vida cristã não são simples questões de gosto, coisas em que nos ocupamos se nos dá na veneta. Não são práticas “piedosas” para “almas devotas”. É um dever essencial procurarmos um adequado grau de conhecimento da nossa fé, e desse dever resulta o primeiro mandamento. Muitas tentações sobre a fé nascem do nosso pouco conhecimento.

Conhecer é importante, acolher também, mas as verdades da fé exigem a profissão externa da nossa fé. Não só para aqueles que vivem nos países onde o catolicismo é perseguido, mas também à vida ordinária de cada um. Podemos ter reparos em expressar a nossa fé por medo de que prejudique os nossos negócios, por medo de chamar a atenção, por medo às ironias ou ao ridículo. Por fugirmos de professar a nossa fé por covardia, também prejudicamos o próximo que tenha uma fé vacilante ou não totalmente esclarecida. Realmente, enfrentaremos muitas situações em que a necessidade concreta de dar testemunho da nossa fé surgirá da obrigação de fortalecermos com nosso exemplo a fé dos outros.

 

PECADOS CONTRA A FÉ.

 

Há certos pecados graves e concretos contra essa virtude que merecem uma menção especial. Temos o pecado de apostasia. Apóstata é aquele que abandona a fé. Um relaxamento na vida de fé pode levar a uma apostasia. Ninguém pode ir vivendo de costas para Deus ou estar indefinidamente em pecado mortal, rejeitando constante a graça de Deus, sem que afinal se encontre sem fé.

Outra causa de apostasia é a soberba intelectual. É um perigo a que se expõe quem se aventura imprudentemente a ultrapassar os seus limites intelectuais e espirituais. É o caso do jovem que entra na universidade e se deixa levar pelas ideias de seu professor e vai, pouco a pouco, deixando a sua vida espiritual e sua prática religiosa.  Outro perigo são as leituras imprudentes. Uma pessoa afetada de pobreza intelectual pode ser presa fácil das areias movediças de autores refinados e engenhosos, cuja atitude para com a religião seja de suave ironia ou altivo desprezo.

Finalmente, a apostasia pode ser resultado do pecado habitual. Um homem não pode viver em contínuo conflito consigo mesmo. Se as suas ações contradizem a sua fé, uma das duas partes tem que ceder. Se negligencia a graça, é fácil que jogue pela janela a sua fé ao invés do seu pecado. Muitos justificam a perda da fé por dificuldades intelectuais, quando na realidade tratam de encobrir desse modo o conflito mais íntimo e menos nobre que têm por causa de suas paixões.

Existe também a heresia, que é a rejeição parcial da fé. Herege é um batizado que se recusa a crer numa ou mais verdades reveladas por Deus e ensinadas pela Igreja Católica (dogmas). Rejeitar uma dessas verdades é rejeitar todas. A heresia se liga o indiferentismo. O indiferentismo sustenta que todas as religiões são igualmente gratas a Deus, que uma é tão boa como qualquer outra, e que é questão de preferência ou de educação professar determinada religião ou até nenhuma. O erro básico do indiferentismo está em imaginar que o erro e a verdade são igualmente gratos a Deus; ou em pensar que a verdade é o que cada um crê. A heresia do indiferentismo está especialmente enraizada nos países que se gabam de ter “mentalidade aberta”. O indiferentismo pode ser pregado tanto por palavras como por ações. É por esse motivo que se torna má a participação de um católico em cerimônias não católicas, por exemplo a assistência aos serviços religiosos protestantes, fora dos casos prescritos pela Igreja, dentro das normas sobre o ecumenismo. Participar ativamente de tais cerimônias – por exemplo, receber a comunhão num culto protestante – é um pecado contra a virtude da fé. Um católico pode, natural mente, assistir (sem participar ativamente) a um serviço religioso não católico, sempre que haja razão suficiente. Por exemplo, a caridade justifica a nossa assistência às exéquias ou ao casamento de um parente, de um amigo ou vizinho não católico. Em ocasiões assim, todos sabem a razão da nossa presença.

 

ESPERANÇA E CARIDADE

 

Um ato de esperança é um ato de culto a Deus: expressa a nossa confiança total n’Aquele que é pai amoroso, onisciente e todo poderoso. Quer se trate de um ato de esperança interior ou da sua exteriorização por meio de palavras, com ele louvamos o poder, a fidelidade e a misericórdia infinitos de Deus. Realizamos um ato de verdadeiro culto. Cumprimos um dos deveres do primeiro mandamento.

Por Ele afirmamos a nossa convicção na realização de suas promessas. De que a sua misericórdia sem limites ultrapassa as fraquezas e extravios humanos, desde que eu faça razoavelmente tudo o que esteja ao meu alcance. Daqui já é fácil deduzir um dos pecados contra essa virtude: se não fazemos o que está ao nosso alcance, se assumimos a cômoda posição de evitar esforços, pensando que, como Deus quer que vamos para o céu, é assunto seu conduzir-nos até lá, independente de que a nossa conduta seja esta ou aquela, então somos culpados do pecado de presunção, um dos dois pecados contra a esperança. São muitas as situações em que nos expomos a situações que nos levarão a pecar.

Outro tipo de pecado contra a virtude da esperança é o desespero, que é o oposto da presunção. Enquanto neste último caso se espera demasiado de Deus, naquele espera-se demasiado pouco. Judas Iscariotes, balançando ao vento com uma corda no pescoço, é a imagem perfeita do pecador desesperado, que tem remorso mas não contrição.

Honramos a Deus com a nossa fé n’Ele, honramo-lo com nossa esperança n’Ele. Mas, acima de tudo, honramo-lo com nosso amor. Fazemos um ato de amor a Deus sempre que manifestamos – interiormente com a mente e o coração, ou externamente com palavra e obras – o fato de amarmos a Deus sobre todas as coisas e por Ele mesmo.

A verdadeira caridade ou amor de Deus não tem por motivo o que Ele possa fazer por nós. A caridade autêntica consiste em amar somente (ou, ao menos, principalmente) porque Ele é bom e infinitamente amável em si mesmo. O genuíno amor a Deus, como o amor de um filho por seus pais, não é mercenário ou egoísta.

Se o nosso amor a Deus é sincero e verdadeiro, é natural que amemos todos os que ele ama. Isto quer dizer que devemos amar todas as almas que Ele criou e pelas quais Cristo morreu, com a única exceção dos condenados. É fácil ver que o amor sobrenatural ao próximo, tal como o amor a Deus, não reside nas emoções. Podemos sentir naturalmente uma forte antipatia por uma pessoa determinada, e, no entanto, ter por ela um sincero amor sobrenatural. Este amor sobrenatural ou caridade manifesta-se em desejar-lhe o bem, especialmente a sua salvação eterna, em recomendá-la ao Senhor em nossas orações, em perdoar-lhe as injurias que possa infligir-nos, em repelir qualquer pensamento de rancor ou vingança contra ela.

Vejamos alguns pecados contra a caridade. Em primeiro lugar está o ódio. Odiar não é o mesmo que sentir desgosto por uma pessoa, nem sentir-nos magoado quando abusam de nós de uma forma ou de outra. O ódio é um espírito de rancor, de vingança. Odiar é desejar o mal a outrem, é sentir prazer com a desgraça alheia. Podemos odiar a Deus num desejo (absurdo) de fazer-lhe mal, a disposição de frustrar sua Vontade, o prazer diabólico em pecar por ser um insulto a Deus.

O ódio ao próximo é o mais frequente. Que varia entre o desejo de que uma desgraça lhe aconteça ou de que simplesmente perca o ônibus, que faz a diferença entre o mortal e o venial. Outro pecado contra a caridade é a inveja. Consiste num ressentimento contra a boa sorte do próximo, como se esta fosse uma forma de nos roubar. Mais grave ainda é o pecado do escândalo, pelo qual, com as nossas palavras ou o nosso exemplo, induzimos uma pessoa a pecar ou a colocamos em ocasião de pecado, mesmo que este não se siga necessariamente. Por fim, temos o pecado de tibieza, um pecado contra o amor de Deus e o amor sobrenatural que devemos a nós mesmos. A tibieza é uma preguiça espiritual pela qual desprezamos os bens espirituais (como a oração ou os sacramentos) pelo esforço que trazem consigo.

 

SACRILÉGIO E SUPERSTIÇÃO

 

Não é fácil perder a fé. Se apreciamos e cultivamos o dom da fé que Deus nos outorgou, não cairemos na apostasia ou na heresia, mas isso exige de nós sempre a devida atenção com todo tipo de ameaça que nos circunda, que vai desde uma outra pessoa e até meios que nos influenciem.

Se a nossa fé é profunda, viva e cultivada, não há o perigo de cairmos em outro pecado contra o 1º mandamento que emana da falta de fé: o pecado de sacrilégio. É sacrilégio maltratar pessoas, lugares ou coisas sagradas. Na sua forma mais leve, procede de uma falta de reverência para o que é de Deus; na sua gravidade máxima, vem do ódio a Deus e a tudo que d’Ele.

Se a nossa fé é sã, o pecado de sacrilégio não se dará na nossa vida. Para a maioria de nós, o que mais nos deve preocupar é manifestar a devida reverência pelos objetos religiosos que usamos habitualmente: guardar a água benta num recipiente limpo e em lugar apropriado; manusear os evangelhos com reverência e tê-los em lugar de honra na casa; queimar os escapulários e terços estragados, em vez de jogá-los na lata do lixo; passar por alto as fraquezas e defeitos dos sacerdotes e religiosos que nos desagradam, e falar deles com respeito por ver neles alguém que pertence a Deus; comportar-nos com respeito na igreja, especialmente nos casamentos e batizados, quando o aspecto social poderia facilmente nos levar a descuidá-lo. Esta reverência é a roupagem externa da fé.

A superstição é um pecado contra o 1º mandamento porque atribui a pessoas ou coisas criadas uns poderes que só pertencem a Deus. A honra que devia dirigir-se a Ele desvia-se para uma de suas criaturas. CIC 2111.

Só Deus conhece de modo absoluto o futuro contingente, sem reservas nem acasos. Por essa razão, acreditar em adivinhos ou espíritos é um pecado contra o primeiro mandamento, porque é uma desonra a Deus.

Pela sua natureza, a superstição é um pecado mortal. No entanto, na prática, muitos desses pecados são veniais por não haver plena deliberação, especialmente nos casos de arraigadas superstições populares que tanto abundam na nossa sociedade materialista: dias nefastos e números de sorte, tocar em madeira ou outras coisas do gênero. CIC 2116.

Às vezes, os nossos amigos não católicos suspeitam que pecamos contra o primeiro mandamento pelo culto que rendemos aos santos. Esta acusação seria fundada se lhe prestássemos o culto chamado de latria, de adoração, que se deve a Deus e só a Deus. Mas não é assim; não somos tão loucos. O próprio culto que tributamos a Maria, a Santíssima Mãe de Deus, um culto que ultrapassa o dos anjos e santos canonizados, é de natureza muito diferente do culto de adoração que prestamos – e só se pode prestar - a Deus.       



[i] Os mandamentos, segundo Deus os deu, não estão claramente numerados de um a dez. A sua disposição em dez divisões, para ajudar a memorizá-lo, é coisa humana. Frequentemente, o primeiro mandamento, tão extenso, dividia-se em dois: “Eu sou o Senhor teu Deus..., não terás outros deuses diante da minha face”, era o primeiro; e o segundo era: “Não farás para ti escultura nem figura alguma... Não te prostrarás diante delas e não lhes prestarás culto”. Depois, para manter exatamente o número dez, os dois últimos mandamentos – “Não cobiçarás a casa do teu próximo”... nem nada do que lhe pertence” – se juntaram num só. Os mandamentos são os mesmos no catecismo católico e protestante, há apenas diferentes sistemas de numeração.

No Monte Sinai, Deus – à exceção de ter destinado um dia específico para e Ele – não impôs novas obrigações à humanidade. Desde Adão, a lei natural exigia do homem a prática do culto a Deus, da justiça, da veracidade, da castidade e das demais virtudes morais. Deus apenas gravou em tábuas de pedra o que a lei natural já exigia do homem.

 

 

Os Mandamentos – Introdução – Obras de Misericórdia e Conselhos Evangélicos


CIC = Catecismo da Igreja Católica   

 

Depois de refletirmos sobre os artigos do credo, voltamo-nos sobre os mandamentos. Estes são parte da nossa profissão de fé, pois quem crer nas verdades reveladas por Deus e não se empenhe em observar Suas leis é mentiroso e hipócrita. É muito fácil dizer “Creio”; mas as nossas obras devem ser a prova irrefutável da nossa fé. Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus; mas somente o que faz a vontade de meu Pai que está nos céus (Mt 7,21).

A lei de Deus não se compõe de arbitrários “faça isto” e “faça aquilo”, com o objetivo de nos aborrecer ou podar a nossa liberdade. É verdade que ela põe em prova a fortaleza de nossa fibra moral, mas não é esse o seu objetivo primordial. A lei de Deus é a expressão do seu amor e sabedoria infinitos (cf. CIC n. 2067).

Poderíamos pensar um mundo onde todos obedecessem à lei de Deus, para percebermos quantas estruturas e situações que constatamos não precisariam existir. Sabemos que, como conseqüência do pecado original, este mundo belo e feliz jamais existirá. Mas, individualmente, pode existir para cada um de nós. Nós, como a humanidade no seu conjunto, encontraríamos a verdadeira felicidade, mesmo neste mundo, se identificássemos a nossa vontade com a de Deus. Fomos feitos para amar a Deus aqui e na eternidade. Este é o fim da nossa existência, nisso encontramos a nossa felicidade. E Jesus dá-nos as instruções para conseguirmos essa felicidade com simplicidade absoluta: Se me amais, observareis os meus mandamentos (Jo 14,15).

A lei de Deus que rege a conduta humana chama-se lei moral, do latim mores, que significa modo de agir. A lei moral é diferente das leis físicas, pelas quais Deus governa o resto do universo, nestas não há liberdade de escolha, enquanto a lei moral atua dentro do marco do livre arbítrio. Se não fôssemos fisicamente livres, não poderíamos ter mérito. Se não tivéssemos a nossa liberdade, a nossa obediência não poderia ser um ato de amor.

Ao considerarem a lei divina, os moralistas distinguem entre lei natural e lei positiva. A reverência dos filhos para com os pais, a fidelidade matrimonial, o respeito à pessoa e à propriedade alheias pertencem à própria natureza humana. Esta conduta, que a consciência do homem – o seu juízo guiado pela justa razão – aplaude, chama-se lei natural. Comportar-se assim seria bom, o contrário, mau, ainda que Deus não no-lo tivesse declarado expressamente. Mesmo que não existisse o sexto mandamento, o adultério seria mau. Uma violação da lei natural é má intrinsecamente, quer dizer, má por sua própria natureza. Já era má antes que Deus desse a Moisés os dez mandamentos no Monte Sinai.

Além da lei natural, existe a lei divina positiva, que agrupa todas aquelas ações que são boas porque Deus mandou para o nosso bem, e más porque Ele as proibiu igualmente para o nosso bem. São as ações cuja necessidade para sermos bons não está na própria raiz da natureza humana, mas que foram ordenadas por Deus para aperfeiçoar o homem segundo os seus desígnios.

Quer consideremos uma ou outra lei, a nossa felicidade depende da obediência a Deus (cf. CIC n. 2052). Se queres entrar na vida, guarda os mandamentos (Mt 19,17).

Amar significa não ter em conta o que as coisas custam. Uma mãe jamais pensa em medir os esforços e os desvelos que dedica a seus filhos; um esposo não leva em conta a fadiga que lhe custa velar pela esposa doente. Amor e sacrifício são termos quase sinônimos. Por essa razão, Jesus resumiu toda a lei de Deus em dois grandes mandamentos (cf. Mt 22,35-40). Na realidade, o segundo mandamento está contido no primeiro, porque, se amamos a Deus com todo o coração e com toda a alma, amaremos aquele que, atual ou potencialmente, possui uma participação na bondade divina, e queremos para ele o que Deus quer. Também nos amaremos retamente a nós mesmos, querendo para nós o que Deus quer. Como o amor por nós é a medida do nosso amor ao próximo, desejaremos para o nosso próximo o que desejamos para nós. Queremos que o próximo cresça em amor a Deus, que cresça em santidade. Queremos também que alcance a felicidade eterna para a qual Deus o criou.

Isso significa, por sua vez, que teremos que odiar qualquer coisa que separe o próximo de Deus. Odiaremos as injustiças e os males feitos pelo homem, que podem ser obstáculos para o seu crescimento em santidade.

Nos Dez mandamentos encontramos os nossos principais deveres para com Deus, para com o próximo e para conosco próprio. Os três primeiros declararam nossos deveres para com Deus; os outros sete indicam os principais deveres para com o nosso próximo e, indiretamente, para conosco próprios. Sua origem remonta a Moisés, dados por Deus a este no Monte Sinai, ratificados pelo próprio Jesus: Não julgueis que vim abolir a Lei ou os profetas; não vim destruir, mas cumpri-los (Mt 5,17). CIC 2072.

Jesus aperfeiçoa a Lei de duas maneiras. Em primeiro lugar fixa-nos alguns deveres concretos para com Deus e para com o próximo. Estes deveres, dispersos nos evangelhos e nas epístolas, são os que se relacionam nas obras de misericórdia corporais e espirituais. Em segundo lugar, Jesus esclarece esses deveres dando à sua Igreja o direito e o dever de interpretar e aplicar na prática a lei divina, o que se concretiza nos denominados mandamentos da Igreja.

Os mandamentos da Igreja não são novas cargas adicionais que nos obriguem por cima e para além dos mandamentos divinos. As leis da Igreja não são mais do que interpretações e aplicações concretas da lei de Deus. Por exemplo. Deus ordena que dediquemos algum tempo ao seu culto. Nós poderíamos dizer: “Sim, quero fazê-lo, mas como? ” E a Igreja responde: “Indo à Missa aos domingos e dias de guarda”. Este fato, o fato das leis da Igreja não serem se não aplicações práticas das leis divinas, é um ponto que merece ser destacado. Há pessoas, até católicas, que raciocinam distinguindo as leis de Deus das leis da Igreja, como se Deus pudesse está em oposição consigo mesmo.

Aqui temos, pois, as diretrizes divinas que nos dizem como aperfeiçoar a nossa natureza, como cumprir a nossa vocação de almas redimidas: os Dez mandamentos de Deus, as sete obras de misericórdia corporais e sete espirituais, e os mandamentos da Igreja de Deus. Todos eles, é claro, prescrevem somente o mínimo em santidade. O autêntico amor a Deus supera a letra da lei, indo ao seu espírito. Devemos esforçar-nos por fazer não só o que é bom, mas o que é perfeito. Aos que não tem medo de voar alto, o Senhor propõe a observância dos chamados conselhos evangélicos: pobreza voluntária, castidade perpétua e obediência perfeita.

Falaremos de cada um deles – dos Mandamentos de Deus e da sua Igreja, das obras de misericórdia e dos conselhos evangélicos – a seu devido tempo. E, dado que o lado positivo é menos conhecido que as proibições, comecemos com as obras de misericórdia.

 

As obras de misericórdia.

 

Guardar-se do pecado é apenas um lado da moeda da virtude. É algo necessário, mas não suficiente. O amor a Deus e ao próximo vai muito mais longe. Para começar, temos as obras de misericórdias corporais (cf. 2447-2449). Chamam-se assim porque dizem respeito ao bem-estar físico e temporal do próximo. Respingadas das Sagradas escrituras, são sete: (1) visitar e cuidar dos enfermos; (2) dar de comer e quem tem fome; (3) dar de beber aquém tem sede; (4) dar pousada aos peregrinos; (5) vestir os nus; (6) redimir os cativos; (7) enterrar os mortos. Na sua descrição do Juízo Final (Mt 25,34-40), Cristo estabelece o seu cumprimento como prova de nosso amor por Ele.

Quando nos detemos a examinar a maneira de cumprir as obras de misericórdia corporais, vemos que são três as vias pelas quais podemos dirigir nossos esforços. Primeiro, temos o que se poderia chamar a “caridade organizada”. Nas nossas cidades modernas, é muito fácil esquecer o pobre e o desgraçado, perdido entre a multidão. Mais ainda, algumas necessidades são demasiado grandes para que possam ser remediadas por uma só pessoa. E assim contamos com muitos tipos de organizações para as mais diversas atenções sociais, a que os necessitados podem recorrer. Quando ajudamos, quer diretamente, quer por meio de coletas ou campanhas, cumprimos uma parte das nossas obrigações para com o próximo, mas não todas.

Outro modo é colaborar em movimentos pela promoção cívica e social. Se nos preocupamos de melhorar a habitação das famílias pobres; se trabalhamos para atenuar as injustiças que pesam sobre os migrantes do campo, etc. se prestamos a nossa cooperação ativa a organizações cujo objetivo é tornar a vida do próximo um pouco menos pesada, estamos praticando as obras de misericórdia corporais.

A terceira via é aquela de prestar ajuda direta e pessoal aos nossos irmãos sempre que se apresente a oportunidade – ou, melhor dito, o privilégio. Sejam quais forem os esforços necessários realizados no nível das causas, ficará sempre uma margem ampla e inevitável de infortúnios (doenças, acidentes, solidões, inadaptações, discriminações, incompreensões, irresponsabilidades etc.) que em nada derivam das lacunas de um sistema social, econômico ou outro. E em função desses infortúnios o modelo do samaritano de Lc, mesmo lido de maneira mais literal, permanece inteiramente pertinente e inspirador. Tudo isso para que a nossa relação com o próximo não fique no nível do abstrato.

Entra aqui a dimensão do amor a Cristo com que praticamos tais obras. O mérito ou demérito do pobre não nos deve preocupar excessivamente. Não podemos fomentar a vadiagem dando esmolas com imprudência; mas devemos ter em conta que negar a nossa ajuda a uma família necessitada por ser “uma coleção de inúteis”, porque “o pai bebe” ou a “mãe não é boa dona de casa” (o que equivale a castigar a criança pelos defeitos dos pais), é por em perigo a salvação de nossa alma. A verdade não é menos exigente que isso.

Além do elemento material tão necessário, é possível realizar obras de misericórdia de outras maneiras. Se visitar os presos já não é algo tão simples assim em nossos tempos é sempre possível colaborar com as atividades da pastoral carcerária, dar uma assistência jurídica ou mesmo fazer algo pela família do preso. Melhor que isso seria procurar que não se chegasse a essa situação estando atento as iniciativas que são preventivas em nossa sociedade.

Nossas visitas podem não curar um enfermo, mas confortam e animam; nosso auxílio aos que dele devem cuidar tem um mérito muito grande. Nossa presença num velório é não somente um conforto para família, mas um honrar também a Cristo cuja graça santificou o corpo ao qual oferecemos nossos últimos respeitos.

As obras de misericórdia espirituais são tradicionalmente sete: (1) ensinar a quem não sabe; (2) dar bom conselho a quem dele necessita; (3) corrigir quem erra; (4) perdoar as injúrias; (5) consolar os tristes; (6) sofrer com paciência os defeitos do próximo; (7) rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos.

A capacidade intelectual é um dom a ser utilizado e partilhado. Aqui os pais e mestres têm um papel importante. Na formação da verdade, no conhecimento religioso. Ao darmos conselho é importante estarmos seguros de estamos sendo sinceros, desinteressados e baseados nos princípios da fé; de que não escolhemos o caminho fácil de dar a quem nos escuta o conselho que quer ouvir, sem ter em conta o seu valor.

A correção dos erros por pais e mestres é um dever muito claro; o que nem sempre enxergamos com a mesma clareza é que o exemplo é sempre mais convincente que as admoestações.  A responsabilidade de conduzir os outros para a virtude é algo que toca a todos, de acordo com a nossa maior ou menor autoridade. É um dever que temos de exercer com prudência e inteligência. É essencial que façamos a nossa correção com delicadeza e com carinho, tendo bem presentes as nossas próprias faltas e fraquezas. Prudência não quer dizer covardia (cf. Tg 5,19-20).

O sofrimento das injurias talvez seja a parte mais complicada. Tudo o que temos de humano, tudo o que nos é natural se subleva contra o motorista imprudente que nos fecha a passagem, contra o amigo que nos atraiçoa, contra o vizinho que espalha mentiras sobre nós e por aí vai. É aqui que tocamos o nervo mais sensível do amor próprio. Como o Cristo na cruz, somos chamados a perdoar por não saberem o que fazem. É aqui que o nosso amor a Deus passa pela prova máxima e se vê se o nosso amor ao próximo é autenticamente sobrenatural.

Consolar os tristes é algo que surge espontaneamente em muitos de nós. Se somos seres humanos normais, sentimo-nos naturalmente compadecidos dos aflitos. Mas é essencial que o consolo que oferecemos seja mais que meras palavras e gestos sentimentais. Se podemos fazer alguma coisa para confortar uma pessoa que sofre, não podemos deixar de fazê-lo porque isso nos vai custar aborrecimentos ou sacrifícios. As nossas palavras de consolo serão mil vezes mais eficazes se forem acompanhadas de obras.

Por fim, rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos é algo que certamente fazemos, conscientes do que significa ser membro do Corpo Místico de Cristo e da Comunhão dos Santos. Mas aqui também pode meter-se o egoísmo, se as nossas orações se limitam às necessidades da nossa família e dos amigos mais íntimos. A nossa oração, como o amor de Deus, deve abarcar o mundo.

 

Os conselhos evangélicos.

 

De todos os conselhos e diretrizes que se dão no Evangelho, os chamados conselhos evangélicos são os mais perfeitos. A sua observância liberta-nos – na medida em que a natureza humana pode ser livre – dos obstáculos que se opõem ao nosso crescimento em santidade, em amor a Deus. Quem abraça esses conselhos renuncia a uns bens valiosos, mas menores, que no quadro da nossa natureza decaída competem freqüentemente com o amor a Deus.

Ao desposarmos voluntariamente a pobreza, manietamos a cobiça e a ambição, que são instigadoras de tantos pecados contra Deus e contra o próximo. Ao oferecermos a castidade perfeita, subjugamos a carne para que o espírito possa se elevar sem amarras nem divisões até Deus. Ao aderirmos à obediência perfeita, fazemos a mais custosa das renúncias, entregamos o que é mais caro ao homem, mais que a ambição de possuir ou poder procriar: renunciamos ao domínio da nossa própria vontade. Esvaziando de nós mesmos tão completamente quanto possa sê-lo um homem – sem bens, sem família, sem vontade própria –, ficamos livres ao máximo de nossos condicionalismos, para abrir-nos à ação da graça; estamos no chamado caminho da perfeição.

O espírito dos conselhos evangélicos não se encerra dentro dos muros dos conventos e mosteiros. Este espírito é essencial a toda vida autenticamente cristã. A maioria dos cristãos é chamado a vivê-lo de acordo com as circunstâncias, embora só se peça a sua observância absoluta a uns poucos.

É evidente que há muita gente que vive “no mundo” e é muito mais santa que outros que vivem “na religião”, afastados do mundo. É igualmente evidente que ninguém deve pensar que está condenando a uma vida “imperfeita” porque não se tornou frade ou freira. Para cada indivíduo, a vida mais perfeita é aquela à qual Deus chama. Há santas na cozinha como no claustro; há santos no comércio como no convento.

Se tivemos uma sólida formação cristã é normal que em determinado momento de nossa história perguntemos “o que Deus quer de mim? ” Na oração e no aconselhamento vamos descobrindo a nossa vocação.


Bíblia – Gênesis – 3ª Parte

A História de José

No lugar em que atualmente se encontra, a história de José apresenta-se claramente como ponte entre as narrativas patriarcais e o relato do livro do Êxodo. Na sua origem, porém, é uma história acabada e escrita pela sapiencial da corte de Salomão. Sabemos que Salomão adotou tanto a cultura como a política egípcias. A história de José visava justificar esse estado de coisas, principalmente a entrada da cultura e política egípcias, e até mesmo uma nova concepção sobre o modo como Deus age na história.

- O irmão indesejável (cp. 37). O início da história de José é dramático e já aponta para o seu desenvolvimento posterior. José, filho de Jacó e Raquel, é o preferido do pai, e sua “túnica de mangas longas” é roupa de festa, sinal de que José não precisava trabalhar, e ainda dedurava os irmãos. Não bastasse isso, os sonhos, que ele ingenuamente conta para a família, acabam suscitando raiva e ciúme, pois tais sonhos indicam claramente a sua supremacia (37,1-11). 

A reação dos irmãos logo se faz sentir, e agora a narrativa se encaminha para o lugar onde tudo mais vai acontecer: o Egito (37,22-36). Na trama montada pelos irmãos sobressaem Ruben e Judá, que voltarão mais tarde com importante papel nessa história.

- Judá e Tamar (cp. 38). Gn 38 é um texto deslocado que ficaria melhor depois de Gn 36. Embora estrangeira como Rute, Tamar foi incorporada ao povo de Deus e, através de seu filho Farés, tornou-se antepassada do rei Davi (cf. Rt 4,12.18-22), e também fará parte da genealogia de Jesus (cf. Mt 1,3).

O texto mostra como funcionava a lei do levirato: quando o marido morria sem deixar filhos, seu irmão era obrigado por lei a se unir com a viúva, e o filho que nascesse seria considerado como filho do irmão morto. Essa lei visava conservar a herança no âmbito da família (cf. Dt 25,5-10). Onã é condenado por violar essa lei.

O importante é notar como a Bíblia considera grave uma falta contra a justiça. Podemos ficar admirados com o ato de Onã (coito interrompido) ou com a atitude Judá e Tamar (prostituição). Acima de tudo isso, porém, está a justiça prevista pela lei e à qual o texto dá toda a importância.

- Providência de Deus e providência do homem (caps. 39-41) A história de José prossegue em descida cada vez maior. Além de estar longe do pai, do qual era preferido, perde a liberdade, e de escravo torna-se prisioneiro. Todavia, por quatro vezes o autor salienta que “Deus estava com José”. Assim, o relato frisa um pormenor: qualquer pessoa pode estar sendo instrumento de Deus e, através dela, Deus espalha suas bênçãos para todos que a cercam.

Na prisão (Gn 40), José continua sua trajetória de homem privilegiado: é ele que praticamente supervisiona a prisão. Desta forma, o autor vai sempre mostrando que José é o escolhido de Deus para grandes coisas.

Para os antigos, o sonho era uma mensagem cifrada em que Deus se manifestava ao homem e revelava o futuro. O significado do sonho, porém, só podia ser interpretado por Deus (40,8; 41,16). Mostrando que José é capaz de interpretar os sonhos, o texto afirma que ele sabe discernir a ação de Deus na história, isto é, sabe ler o que Deus está para realizar. Contudo, o seu exílio na prisão continua, pois ninguém se lembra dele.

Os sonhos do Faraó tornam-se a ocasião concreta para a ascensão de José. Além de mostrar discernimento para interpretar os sonhos, e perceber a ação de Deus, José demonstra também o tino administrativo que poderá salvar o país da fome (41,33-36). Com isso, fica provado que José é sábio: é capaz de discernir a ação de Deus e agir de acordo. De fato, fica assim completada a obra da graça: Deus providencia, mas sua ação não dispensa nem a inteligência, nem a ação do homem. Não basta esperar que Deus dê tudo pronto; é preciso analisar as situações, descobrir a presença e a ação de Deus, e tomar atitudes adequadas.

Por seu discernimento e tino administrativo, José se torna vice-rei do Egito. Graças a ele, a situação de fome é contida e a fama nacional e internacional se torna realidade. Seus filhos Manasses e Efraim se tornarão, mais tarde, duas tribos de Israel, formando a “Casa de José”.

Toda essa fase da vida de José pode ser vista em Pr 22,29: “Você já viu um homem perito no seu trabalho? Ele será contratado para servir a reis, e não pessoas sem importância”.

- Teste de fidelidade (caps. 42-44). Prepara-se, pouco a pouco, o ponto máximo da narrativa. Como era prenunciado em seus sonhos, José se torna uma pessoa importante, não só para o Egito, mas também para os países vizinhos. Naqueles sonhos estava anunciado que sua família se prostraria diante dele (cf. 37,5-11). Chegou o momento! José recebe os irmãos como um verdadeiro soberano, e a narrativa é dramática porque ele os reconhece, mas eles não. Segue-se uma dura prova para verificar se os irmãos se arrependeram do que lhe haviam feito. O que José quer de fato saber é se agora os irmãos são capazes de agir com fraternidade (42,1-38). Simeão é escolhido como refém, pois era o segundo filho, e José fica sabendo que Ruben, o mais velho, não era culpado. Como José, Benjamim era filho de Raquel, a esposa amada de Jacó. José quer ver como é que os irmãos são capazes de tratar o irmão mais novo. Será que odeiam Benjamim como odiaram José?

O dinheiro, colocado de volta junto aos mantimentos, testemunha a bondade de José para com a família; ele está fazendo um dom e não uma venda. Os irmãos, porém, ficam temerosos: depois de serem tratados com severidade por um “desconhecido”, o que significaria dinheiro junto com os mantimentos? O segundo encontro (Gn 43) é um encontro alegre. Agora todos os irmãos estão juntos, embora se conserve a etiqueta: comem em mesas separadas, o que não impede a José de mostrar simpatia, principalmente em relação a Benjamim. O teste, porém, continua, e desta vez mais radical (Gn 44). A taça colocada na saca de Benjamim alude claramente a um possível roubo, que deverá ser pago pelo próprio Benjamim. E agora? É o momento da grande confissão feita por Judá, que fora responsável pela venda de José como escravo (cf. 37,26-27). É o ponto alto da narrativa, Judá se dispõe a ficar no lugar de Benjamim (44,33-34). Com isso, o teste chega ao fim: os irmãos estão dispostos a assumir a responsabilidade pelo irmão.

- Política agrária de José (Gn 47,13-26). Esse texto tem a finalidade claramente ideológica. De fato, ele mostra a política agrária dos faraós, que também foi implantada em Israel no tempo do rei Salomão. Dizendo que essa política fora criada por um patriarca israelita (José), o relato visa justificar a situação do povo e da terra no tempo de Salomão. Note-se o empobrecimento progressivo do povo e modo como ele chega finalmente a se tornar escravo do poder político: primeiro, perde o dinheiro, depois, perde o rebanho; em seguida, perde a terra e a liberdade. Finalmente, depois de perder tudo, recebe sementes para plantar na terra do Faraó e pagar como tributo a quinta parte da colheita! (Cf. 47,25). Vale a pena ser escravo para sobreviver?

- A ação de Deus na história (caps. 45-50). No auge do encontro, José se dá a conhecer aos irmãos, e a narrativa caminha agora para mostrar como os hebreus se fixaram no Egito. Trata-se certamente de uma idealização da história. Na verdade, muitas levas de migrantes foram forçadas a procurar o Egito a fim de sobreviver. Dessa forma, o livro do Gn prepara a narrativa do livro do Ex, as últimas palavras de José alude à libertação do Egito (cf. 50,24-25).

A história de José, como podemos ver, é muito bela e humana. Contudo, o ponto principal é que ela veicula uma nova concepção teológica sobre o modo como Deus age na história: Deus não age diretamente, mas através das ações dos homens e das circunstâncias que muitas vezes passam despercebidas para as próprias pessoas que nelas estão envolvidas. Dois textos importantes para percebermos essa teologia. O primeiro é quando José se revela aos irmãos: 45,5-8. O outro texto aparece no fim, quando morre Jacó, e os irmãos temem que José se vingue deles: 50,19-20.

Esses dois textos mostram como a teologia na época de Salomão evoluiu. Antes, a ação de Deus era vista como intervenção direta e especial em certos momentos da história. No tempo de Salomão, caracterizado por um grande desenvolvimento da cultura, aparece uma concepção teológica mais secularizada. Segundo a história de José, Deus está presente de uma forma quase imperceptível e anônima, dirigindo todos os acontecimentos que se processam através da ação humana. Em outras palavras, Deus está agindo sempre, mesmo que as pessoas não percebam. Deus age através delas, mesmo que as intenções humanas queiram produzir o contrário do que será o projeto de Deus.

A essa altura podemos perguntar: qual o critério para distinguir a ação de Deus, se ela ultrapassa as próprias intenções humanas? O critério deve ser buscado no significado que os acontecimentos têm para liberdade e a vida do grupo humano. O autor tinha salientado várias vezes a questão da fome, tanto no Egito como nos países vizinhos e em Canaã. Ora, é justamente a libertação da fome que leva os hebreus para o Egito. O sinal da ação divina, libertando, é mencionado duas vezes por José (45,7; 50,20). Dessa forma, podemos dizer que a ação de Deus está sempre voltada para a liberdade e a vida, mesmo que os homens muitas vezes queiram desviá-la, para produzir escravidão e morte.

Qual a importância dessa visão teológica? Ela certamente é muito realista para não cair na ingenuidade de conceber um Deus que se intrometa arbitrariamente na vida humana, agindo apesar ou até contra as pessoas. Por outro lado, ela traz o constante desafio para que as pessoas tentem descobrir o projeto de Deus e agir de acordo com ele. As coisas não são fáceis como parecem, pois, nessa visão teológica Deus age através do discernimento e da ação do homem, sem que ninguém possa “por a + b” dizer que o que Deus quer é exatamente o que as pessoas estão fazendo. Daí a necessidade do critério apontado por José em 47,7 e 50,20: o que os homens estão fazendo produz a libertação e a vida para todo o povo? O difícil é que não há certezas que, de antemão, assegurem que Deus está querendo isso. As certezas humanas só conseguem reconhecer uma ação divina depois que ela aconteceu. E o importante é não esquecer que, mesmo sendo isso instrumento da ação de Deus, José diz: “por acaso eu estou no lugar de Deus?” (50,19). Isso mostra o maior limite de qualquer pessoa humana: ninguém pode arrogar para si aquilo que pertence a Deus ou, em outras palavras, ninguém pode ter a certeza de o projeto de Deus se esgota na intenção ou ação humana, por melhor que elas sejam.

- Conclusão: a história de José nasceu na corte de Salomão e visava responder perguntas cruciais. Uma delas era uma questão política bastante grave: “Por que, não sendo primogênito, foi Salomão quem herdou o trono de seu pai Davi?”. Se compararmos a história de José com a história da sucessão de Davi (cf. 2Sm 9—20; 1 Rs 1—2), veremos que a mesma teologia é veiculada. Em 2Sm 7 temos a promessa de uma dinastia real para Davi. Contudo, fica a pergunta: “Quem será o sucessor?” Na história da sucessão, o que vamos encontrar é uma acirrada luta pelo poder, e finalmente Salomão se torna rei, graças a uma intriga de corte. Olhando para a história de José e para a teologia aí veiculada, vemos logo qual era a função política dessa história: Salomão é o legítimo herdeiro e foi Deus que quis assim. Em outras palavras, a teologia exposta na história de José se torna justificativa ideológica para o poder salomônico, calcado inteiramente na política, economia e cultura egípcias.

Tal utilização ideológica não quer dizer que a teologia exposta na história de José não possa ter outros usos. O importante é percebermos que qualquer teologia pode ser usada ideologicamente para mascarar a realidade e tornar aceitáveis até a própria escravidão e a morte. Não podemos esquecer que o critério de julgamento de qualquer teologia é sempre o projeto de Deus.

Gênesis – 2ª Parte


Esaú e Jacó: Um relacionamento difícil (Gn 25,19—36,43)

- A história de Isaac serve de ligação genealógica entre esses dois grupos que estão na base da formação do povo de Israel: o grupo de Abraão e o de Jacó.

A história de Esaú e Jacó é, desde o início, uma história de conflito (cf. 25,19-28). O passo adiante nesse conflito é apresentado quando Esaú perde os seus direitos de filho mais velho, isto é, herança maior, poder maior sobre o clã etc. (cf. 25,29-34). Jacó tem que pagar caro por sua trapaça. O ódio de Esaú já promete vingança mortal (27,41). Por isso Jacó tem que fugir para longe, onde também será ludibriado por seu tio Labão (28,1-8).

- A história de Jacó junto com seu tio Labão mostra como Jacó foi explorado no seu trabalho e como chegou a tornar-se independente. Os textos fornecem um verdadeiro modelo para examinar os problemas das relações que envolvem o mundo do trabalho. O contrato com o tio reflete o contrato de qualquer trabalhador: trabalho versus salário. O salário é aqui substituído pelo acordo em ser pago com a licença para casar-se com Raquel. Isto custaria a Jacó sete anos de trabalho. Porém, na hora de ter seu pagamento, Jacó e ludibriado: em vez do salário combinado recebe outro (Lia em vez de Raquel). E agora começa a exploração: o tio não recusa dar também Raquel como esposa para Jacó, mas exige que Jacó trabalhe para ele mais sete anos. Tudo isso nos oferece um pequeno cenário de exploração e de dependência econômica.

- A narrativa caminha para uma tomada de consciência de Jacó e do seu desejo de liberdade e autonomia (30,26) exigindo participação na propriedade produtiva, em termos atuais, dos meios de produção, como saneamento de uma dívida (30,31-34). Jacó faz o acordo funcionar isso desperta a inveja de Labão e o acordo finda (31,1-3). O ponto importante, porém, é que a conscientização do trabalhador se alastra e faz com que os que antes estavam alienados também percebam os próprios direitos (31,14-16). O dote e a herança não recebidos por Raquel e Lia são substituídos pelo roubo dos ídolos domésticos que, naquele tempo, visavam assegurar a bênção e a prosperidade para a família (31,17-21). Por fim, no diálogo final entre o tio e Jacó fica claro que a única relação possível entre eles é de igualdade, pois a dependência terminou.

- Em resumo, as relações entre Jacó e Labão mostram a trajetória das relações entre patrão empregado. Elas começam com a dependência frente ao patrão e, pouco a pouco, evoluem para a autonomia do empregado. Em outras palavras, essa história mostra como transformar a relação de desigualdade em relação de igualdade.

- Uma lição de fraternidade: após ter sido trapaceado pelo tio Labão, Jacó tem consciência de como dói ser enganado (32,1-22). Como encontrar o irmão depois de tudo que fizera? Jacó teme uma vingança e pensa comprar o irmão com presentes (32,21-22). Todavia, é no encontro com Esaú que Jacó recebe uma grande lição de fraternidade. Preocupado com o encontro, Jacó toma diversas providências e aproxima-se do irmão com gesto de arrependimento (33,1-3). O irmão, porém, o recebe espontânea e afetuosamente, sem qualquer sinal de ódio. Até recusa o presente que Jacó lhe mandou. No centro do texto está a confissão de Jacó, que reconhece a sua falta e admite que não esperava boa acolhida (33,10). A cena faz pensar em Lc 15,20-24: o triunfo do perdão sobre a vingança.

- Por trás de Esaú e Jacó estão os povos edomita e israelita. Assim, o texto não esgota o seu significado numa relação familiar, mas aponta para uma relação maior, onde estão implicados grupos e povos que, muitas vezes, de fato possuiriam ótimas razões para serem inimigos. É na união de povos irmanados que se torna possível a construção de uma história fraterna, onde os povos repartam o mundo em vez de disputá-lo.

- Betel e Fanuel: A essência da religião. A fuga e a volta de Jacó são marcadas por duas experiências fundamentais para entendermos o que é a relação com Deus ou, em outras palavras, o que é a religião.

- Quando foge de casa (28,1-9), Jacó tem a primeira experiência de Deus (28,10-22). Nela, a religião é apresentada como a relação misteriosa entre Deus e o homem (escada entre a terra e o céu). Embora transcendente e infinitamente santo, Deus está sempre em relação viva com as criaturas (anjos que sobem e descem). O homem é incapaz de tomar a iniciativa para fazer essa relação; o máximo a que pode chegar é entregar-se (sono) para que Deus se manifeste gratuitamente (sonho) e revele o projeto que ele vai realizar na vida do homem: descendência e terra (28,13-15). 

- Este episódio é muito rico e mostra que toda e qualquer vida humana que esteja aberta e disponível torna-se um santuário (Betel = casa de Deus). É aí que Deus se manifesta, criando uma história. Dessa manifestação nascem a fé e a confiança em Deus, ao lado do reconhecimento de que tudo vem dele (dízimo). O berço da religião é a experiência do Deus vivo.

- A segunda experiência de Deus ocorre na véspera do reencontro de Jacó com Esaú (32,23-33). Preocupado com o encontro próximo com o irmão, Jacó fica sozinho à noite. Trava-se, então, uma luta misteriosa com um desconhecido, que é o próprio Deus. Jacó luta a noite inteira, porque ele deseja a bênção que proteja sua pessoa e preserve seus bens. Antes de abençoá-lo, o Desconhecido lhe dá o nome de Israel, que será o nome do povo da promessa. A Benção, portanto, não tem em vista qualquer pretensão pessoal, mas a formação de um povo. Por outro lado, o Desconhecido não revela o próprio nome, ou seja, Jacó não poderá manipular a Deus, como fez com o pai e com o irmão. De Jacó nascerá um povo que vai ter como missão realizar o projeto de Deus, sem jamais trapacear esse projeto, sob pena de sofrer sérias consequências. Jacó consegue o que quer, mas deve humilhar e ferir o próprio orgulho para reencontrar o irmão que havia lesado.

- A formação de dois povos. Os doze descendentes de Jacó (35,22-26) indicam as tribos que, unidas, formaram uma confederação que quebrou o domínio das cidades-estado em Canaã e aí se estabeleceram permanentemente, formando o povo de Israel. Os descendentes de Esaú (Gn 36) indicam os grupos que se fixaram ao sul de Canaã e não tomaram parte na confederação israelita. Em vez disso, formaram um estado à parte, chamado reino de Edom. Embora considerados irmãos, esses dois povos estiveram em conflito. O profeta Ezequiel chega a dizer que Edom “cultivou ódio eterno e entregou os israelitas ao fio da espada, no tempo em que estavam na desgraça, no dia do castigo final” (Ez 35,5).

Bíblia – Gênesis – Parte 1


Oração para antes da leitura: “Jesus, nosso Mestre, és o caminho, a verdade e a vida. Ensina-nos a ciência do teu amor. Dá-nos o Espírito Santo a fim de que aprendamos tudo que nos disseste. Jesus Mestre, caminho, verdade e vida, tem piedade de nós”.

 

1. Nosso estudo da Palavra: Não pretendemos fazer um comentário extensivo de cada livro da Bíblia, mas oferecer uma chave de leitura, uma espécie de lanterna que nos ajuda a focalizar e a enxergar, no seu conjunto, o livro escolhido. Nosso objetivo é esclarecer algumas dúvidas possíveis e uma aplicação do texto à nossa própria história.

 

2. O Livro das Origens. Gênesis (Gn) é uma palavra grega que significa nascimento, origem. O primeiro livro da Bíblia foi assim chamado porque nele encontramos as narrativas sobre as origens do mundo, da humanidade e do povo de Deus. Não se trata de narrativas históricas, no sentido atual daquilo que um historiador faz. São antes reflexões do autor sagrado sobre sua origem e origem das coisas. Olhar o passado para entender o presente. Ele procura analisar o que acontece no mais profundo da história e da vida. Por exemplo: temos a experiência do mal? Como explica-lo na sua raiz profunda, não tanto no tempo, mas na sua realidade mais íntima? Para responder a essas perguntas conta-se uma história para fazer ver a raiz do mal (cf. Gn 3).

- Podemos distinguir duas grandes partes neste livro. A primeira, formada pelos capítulos 1 a 11, tem aspecto bastante geral e visa mostrar as origens do mundo, da vida e do processo da história humana dominada pela ambiguidade. A segunda é formada pelos capítulos 12 a 50, onde vamos encontrar conjunto de narrativas populares sobre as raízes distante e obscuras do povo de Deus.

- Dividiremos o Gn em três partes: 1-11 (O mundo e a humanidade); 12-36 (raízes do povo de Deus); 37-50 (Deus age através dos acontecimentos).

 

3. Primeira parte. O mundo e a humanidade. (Gn 1-11)

A Criação (Gn 1-2). Encontramos duas narrativas sobre a criação. Elas pertencem a épocas diferentes e refletem situações e problemas diferentes. Nenhuma delas pretende ser um relato científico das origens do mundo e do homem, pois o narrador não estava presente ao acontecimento. A primeira narrativa (1,1—2,4a) da criação nasceu durante o exílio na Babilônia (586-538 a. C.) e é obra de sacerdotes. O objetivo era conter o risco da perda da própria identidade, cultura e religião, e assimilar o ambiente estrangeiro. A segunda narrativa (2,4b-25) sobrea criação é muito anterior a primeira, pois foi redigida no tempo de Salomão (971-931 a. C.) e reflete outra situação e concepção de criação.

- A ambiguidade humana (Gn 3). Ao dizer que a serpente tentou desde os primeiros seres humanos, o texto se refere a uma problemática mais ampla, cujos efeitos podem ser vistos no mundo político, econômico e social. Mas o que se quer salientar é que existe na vida de cada pessoa o mesmo fenômeno: a tendência a autossuficiência e à pretensão de um discernimento absoluto. Esse discernimento absoluto e essa vida em plenitude são prerrogativas de Deus. É claro que ele criou o homem para que ele chegue a isso através do desenvolvimento pessoal, social e histórico. O pecado está no fato do homem absolutizar o seu pequeno discernimento, como se fosse o discernimento absoluto.  

- A ambiguidade da história (Gn 4-11). Esses capítulos narram a história do progresso e da civilização sob o olhar do autor sagrado como uma análise profunda da história dominada pela ambiguidade humana, isto é, a pretensão de ocupar o lugar de Deus. Percebemos reflexão sobre a competição social (4,1-16), progresso e violência (4,17-26), mas em meio a este “caos” esta o homem religioso que invoca o nome de Deus e tenta reatar sua ligação com Deus e Seu projeto original. A salvação continua na história (cap. 5). As catástrofes históricas (caps. 6-9). A história continua (cap. 10). A pretensão da cidade (11,1-9). Preparando uma nova história (11,10-32).

- Podemos nos servir de toda essa parte da bíblia para fazer uma análise profunda de nossa história. Chegaremos à conclusão de que as coisas não mudaram tanto e de que há sempre a necessidade de uma alternativa na construção do processo histórico. É o que teremos a partir de Gn 12.

 

4. Segunda Parte. As raízes do povo de Deus. (Gn 12-36)

- Abraão e o dinamismo da fé (Gn 12,1—25,18). A história dos patriarcas não deve ser lida como histórias isoladas, e sim como narrativas sobre famílias, clãs e tribos. Por trás das personagens individuais temos, na verdade, grupos inteiros, ora em acordo, ora em desacordo entre si. A data dos acontecimentos também é discutida, e as opiniões variam entre 1850 e 1330 a.C. Esses grupos são seminômades (buscam uma terra fértil para se instalar) e professavam a fé num Deus diferente daqueles grupos já fixados, é o Deus dos pais. A característica principal é que Ele não ficava localizado num templo, mas acompanhava os movimentos do grupo, como uma espécie de Deus itinerante.

- A fé como abertura histórica (cap. 12). Com Abraão começa a história do povo de Deus como alternativa para o processo histórico narrado em Gn 3-11. Desde o início, Abraão aparece como o homem cuja vida é determinada pela. Em que consiste essa fé? Deixar todas as seguranças (terra, parentes, casa do pai) e ir para uma terra que ele não conhece. O que motiva esse movimento é a promessa de se tornar um grande povo e possuir uma terra como propriedade. Todavia, no clima da fé, o horizonte é maior: tornar-se um povo numeroso, portador de Benção e, portanto, de vida para toda a humanidade (12,1-4.7).

A fé é dinamismo que provoca mudança: deixar uma determinada situação para produzir uma realidade alternativa. Nesse sentido, não devemos entender a obediência à fé como um movimento simplesmente geográfico. Sair e ir podem e devem ser entendidos como transformação da realidade. Não qualquer mudança, mas aquela que satisfaz às aspirações legítimas, tanto de Deus como do homem. Na verdade, o Deus que fala a Abraão, fala por dentro de suas aspirações.

- A crise da fé (caps. 15-18). Abraão recebe a promessa e responde com o empenho da fé, entregando a sua vida para que a promessa se cumpra. Contudo, o tempo passa e as coisas prometidas não se verificam imediatamente. Abraão continua peregrino e não possui nenhuma terra; por outro lado, torna-se cada vez mais velho e a esterilidade de Sara compromete qualquer descendência. Como a promessa de se tornar um grande povo pode se realizar, quando parece impossível ter ao menos um filho? Até que ponto a fé na promessa de Deus é eficaz?

Diante da impossibilidade, o homem muitas vezes cria um meio para que as aspirações profundas se realizem, viabilizando, segundo a visão humana, aquilo que Deus prometeu. É o caso de Abraão tendo um filho com a escrava Agar, um subterfúgio legítimo naquele tempo para que a família não ficasse sem descendência. Todavia, o caminho não é facilitar as coisas. O que parece impossível para a visão humana, não é impossível para Deus (18,14). A fé exige entrega e confiança total, pois o mais íntimo da espiração humana só pode ser realizado pela graça de Deus.

A crise de fé, porém, em vez de abalar ou minar a fé, pode reforça-la e, dentro do mistério, fazer com que o homem compreenda mais profundamente que Deus tem seus próprios caminhos. Essa confiança na novidade de Deus é que constitui um crédito de justiça para o homem “Abraão acreditou no Senhor, e lhe foi creditado como justiça” (15,6). O que significa essa justiça? É a vontade de Deus que através da disponibilidade humana, se transforma em projeto visível na história. As crises de fé mostram bem que a origem e a formação do povo de Deus acontecem através da impossibilidade humana que, em vez de ser logo solucionada por Deus, é, pelo contrário, ainda mais testada, para que fique claro que o povo de Deus nasce por pura graça. Isso aconteceu no passado e continua a acontecer sempre, porque, como diz Lc, “para Deus nada é impossível” (1,37).

- A fé exige conversão permanente (caps. 21-22). Nasce Isaac (21,1-7) e mesmo assim Abraão é colocado á prova: sacrificar o filho tão esperado. Sacrificar o filho a Deus significa sacrificar o futuro, ou melhor, não se apossar de antemão desse futuro. Dessa forma podemos perceber que a fé é um tipo de posse, mas não a posse segura do que virá pela frente. A vida pertence a Deus e só ele pode determinar o caminho. Esse texto redigido no tempo de Salomão critica a visão triunfalista de uma fé que arriscava cair no perigo de uma cristalização histórica e duvidosa da promessa. Para obedecer a Deus, Abraão estava disposto a sacrificar Isaac. Foi graças à sua disponibilidade que ele recuperou o filho, mas certamente sabendo que o filho era mais uma vez nascido da graça. O mesmo deve acontecer com o povo de Deus na história. Esse povo deve estar disposto a, em nome da fé, sacrificar o presente, a fim de construir um futuro novo. Também o texto quer afirmar que Deus não quer sacrifício da vida humana, seja ele interrupção ou diminuição dessa vida. O itinerário de Abraão é o mesmo de qualquer outra pessoa de fé. Nele se concretiza o que mais tarde dirá a carta aos hebreus: “A fé é um modo de já possuir aquilo que se espera, é um meio de conhecer realidades que não se veem” (Hb 11,1).

Oração final: “Jesus, divino Mestre, só tu tens palavras de vida eterna. Eu creio, Jesus, meu Senhor e minha verdade, mas aumenta a minha fé. Eu te amo, e te entrego as minhas energias, procurando guardar fielmente os teus mandamentos. E te peço, meu Senhor e minha vida, aceita minha adoração, o meu louvor, a minha ação de graças, pelo dom da Sagrada Escritura. Com Maria, lembrarei tuas palavras, meditando-as no meu coração. Jesus Mestre, caminho, verdade e vida, tem piedade de nós”.