Bíblia – Gênesis – 3ª Parte

A História de José

No lugar em que atualmente se encontra, a história de José apresenta-se claramente como ponte entre as narrativas patriarcais e o relato do livro do Êxodo. Na sua origem, porém, é uma história acabada e escrita pela sapiencial da corte de Salomão. Sabemos que Salomão adotou tanto a cultura como a política egípcias. A história de José visava justificar esse estado de coisas, principalmente a entrada da cultura e política egípcias, e até mesmo uma nova concepção sobre o modo como Deus age na história.

- O irmão indesejável (cp. 37). O início da história de José é dramático e já aponta para o seu desenvolvimento posterior. José, filho de Jacó e Raquel, é o preferido do pai, e sua “túnica de mangas longas” é roupa de festa, sinal de que José não precisava trabalhar, e ainda dedurava os irmãos. Não bastasse isso, os sonhos, que ele ingenuamente conta para a família, acabam suscitando raiva e ciúme, pois tais sonhos indicam claramente a sua supremacia (37,1-11). 

A reação dos irmãos logo se faz sentir, e agora a narrativa se encaminha para o lugar onde tudo mais vai acontecer: o Egito (37,22-36). Na trama montada pelos irmãos sobressaem Ruben e Judá, que voltarão mais tarde com importante papel nessa história.

- Judá e Tamar (cp. 38). Gn 38 é um texto deslocado que ficaria melhor depois de Gn 36. Embora estrangeira como Rute, Tamar foi incorporada ao povo de Deus e, através de seu filho Farés, tornou-se antepassada do rei Davi (cf. Rt 4,12.18-22), e também fará parte da genealogia de Jesus (cf. Mt 1,3).

O texto mostra como funcionava a lei do levirato: quando o marido morria sem deixar filhos, seu irmão era obrigado por lei a se unir com a viúva, e o filho que nascesse seria considerado como filho do irmão morto. Essa lei visava conservar a herança no âmbito da família (cf. Dt 25,5-10). Onã é condenado por violar essa lei.

O importante é notar como a Bíblia considera grave uma falta contra a justiça. Podemos ficar admirados com o ato de Onã (coito interrompido) ou com a atitude Judá e Tamar (prostituição). Acima de tudo isso, porém, está a justiça prevista pela lei e à qual o texto dá toda a importância.

- Providência de Deus e providência do homem (caps. 39-41) A história de José prossegue em descida cada vez maior. Além de estar longe do pai, do qual era preferido, perde a liberdade, e de escravo torna-se prisioneiro. Todavia, por quatro vezes o autor salienta que “Deus estava com José”. Assim, o relato frisa um pormenor: qualquer pessoa pode estar sendo instrumento de Deus e, através dela, Deus espalha suas bênçãos para todos que a cercam.

Na prisão (Gn 40), José continua sua trajetória de homem privilegiado: é ele que praticamente supervisiona a prisão. Desta forma, o autor vai sempre mostrando que José é o escolhido de Deus para grandes coisas.

Para os antigos, o sonho era uma mensagem cifrada em que Deus se manifestava ao homem e revelava o futuro. O significado do sonho, porém, só podia ser interpretado por Deus (40,8; 41,16). Mostrando que José é capaz de interpretar os sonhos, o texto afirma que ele sabe discernir a ação de Deus na história, isto é, sabe ler o que Deus está para realizar. Contudo, o seu exílio na prisão continua, pois ninguém se lembra dele.

Os sonhos do Faraó tornam-se a ocasião concreta para a ascensão de José. Além de mostrar discernimento para interpretar os sonhos, e perceber a ação de Deus, José demonstra também o tino administrativo que poderá salvar o país da fome (41,33-36). Com isso, fica provado que José é sábio: é capaz de discernir a ação de Deus e agir de acordo. De fato, fica assim completada a obra da graça: Deus providencia, mas sua ação não dispensa nem a inteligência, nem a ação do homem. Não basta esperar que Deus dê tudo pronto; é preciso analisar as situações, descobrir a presença e a ação de Deus, e tomar atitudes adequadas.

Por seu discernimento e tino administrativo, José se torna vice-rei do Egito. Graças a ele, a situação de fome é contida e a fama nacional e internacional se torna realidade. Seus filhos Manasses e Efraim se tornarão, mais tarde, duas tribos de Israel, formando a “Casa de José”.

Toda essa fase da vida de José pode ser vista em Pr 22,29: “Você já viu um homem perito no seu trabalho? Ele será contratado para servir a reis, e não pessoas sem importância”.

- Teste de fidelidade (caps. 42-44). Prepara-se, pouco a pouco, o ponto máximo da narrativa. Como era prenunciado em seus sonhos, José se torna uma pessoa importante, não só para o Egito, mas também para os países vizinhos. Naqueles sonhos estava anunciado que sua família se prostraria diante dele (cf. 37,5-11). Chegou o momento! José recebe os irmãos como um verdadeiro soberano, e a narrativa é dramática porque ele os reconhece, mas eles não. Segue-se uma dura prova para verificar se os irmãos se arrependeram do que lhe haviam feito. O que José quer de fato saber é se agora os irmãos são capazes de agir com fraternidade (42,1-38). Simeão é escolhido como refém, pois era o segundo filho, e José fica sabendo que Ruben, o mais velho, não era culpado. Como José, Benjamim era filho de Raquel, a esposa amada de Jacó. José quer ver como é que os irmãos são capazes de tratar o irmão mais novo. Será que odeiam Benjamim como odiaram José?

O dinheiro, colocado de volta junto aos mantimentos, testemunha a bondade de José para com a família; ele está fazendo um dom e não uma venda. Os irmãos, porém, ficam temerosos: depois de serem tratados com severidade por um “desconhecido”, o que significaria dinheiro junto com os mantimentos? O segundo encontro (Gn 43) é um encontro alegre. Agora todos os irmãos estão juntos, embora se conserve a etiqueta: comem em mesas separadas, o que não impede a José de mostrar simpatia, principalmente em relação a Benjamim. O teste, porém, continua, e desta vez mais radical (Gn 44). A taça colocada na saca de Benjamim alude claramente a um possível roubo, que deverá ser pago pelo próprio Benjamim. E agora? É o momento da grande confissão feita por Judá, que fora responsável pela venda de José como escravo (cf. 37,26-27). É o ponto alto da narrativa, Judá se dispõe a ficar no lugar de Benjamim (44,33-34). Com isso, o teste chega ao fim: os irmãos estão dispostos a assumir a responsabilidade pelo irmão.

- Política agrária de José (Gn 47,13-26). Esse texto tem a finalidade claramente ideológica. De fato, ele mostra a política agrária dos faraós, que também foi implantada em Israel no tempo do rei Salomão. Dizendo que essa política fora criada por um patriarca israelita (José), o relato visa justificar a situação do povo e da terra no tempo de Salomão. Note-se o empobrecimento progressivo do povo e modo como ele chega finalmente a se tornar escravo do poder político: primeiro, perde o dinheiro, depois, perde o rebanho; em seguida, perde a terra e a liberdade. Finalmente, depois de perder tudo, recebe sementes para plantar na terra do Faraó e pagar como tributo a quinta parte da colheita! (Cf. 47,25). Vale a pena ser escravo para sobreviver?

- A ação de Deus na história (caps. 45-50). No auge do encontro, José se dá a conhecer aos irmãos, e a narrativa caminha agora para mostrar como os hebreus se fixaram no Egito. Trata-se certamente de uma idealização da história. Na verdade, muitas levas de migrantes foram forçadas a procurar o Egito a fim de sobreviver. Dessa forma, o livro do Gn prepara a narrativa do livro do Ex, as últimas palavras de José alude à libertação do Egito (cf. 50,24-25).

A história de José, como podemos ver, é muito bela e humana. Contudo, o ponto principal é que ela veicula uma nova concepção teológica sobre o modo como Deus age na história: Deus não age diretamente, mas através das ações dos homens e das circunstâncias que muitas vezes passam despercebidas para as próprias pessoas que nelas estão envolvidas. Dois textos importantes para percebermos essa teologia. O primeiro é quando José se revela aos irmãos: 45,5-8. O outro texto aparece no fim, quando morre Jacó, e os irmãos temem que José se vingue deles: 50,19-20.

Esses dois textos mostram como a teologia na época de Salomão evoluiu. Antes, a ação de Deus era vista como intervenção direta e especial em certos momentos da história. No tempo de Salomão, caracterizado por um grande desenvolvimento da cultura, aparece uma concepção teológica mais secularizada. Segundo a história de José, Deus está presente de uma forma quase imperceptível e anônima, dirigindo todos os acontecimentos que se processam através da ação humana. Em outras palavras, Deus está agindo sempre, mesmo que as pessoas não percebam. Deus age através delas, mesmo que as intenções humanas queiram produzir o contrário do que será o projeto de Deus.

A essa altura podemos perguntar: qual o critério para distinguir a ação de Deus, se ela ultrapassa as próprias intenções humanas? O critério deve ser buscado no significado que os acontecimentos têm para liberdade e a vida do grupo humano. O autor tinha salientado várias vezes a questão da fome, tanto no Egito como nos países vizinhos e em Canaã. Ora, é justamente a libertação da fome que leva os hebreus para o Egito. O sinal da ação divina, libertando, é mencionado duas vezes por José (45,7; 50,20). Dessa forma, podemos dizer que a ação de Deus está sempre voltada para a liberdade e a vida, mesmo que os homens muitas vezes queiram desviá-la, para produzir escravidão e morte.

Qual a importância dessa visão teológica? Ela certamente é muito realista para não cair na ingenuidade de conceber um Deus que se intrometa arbitrariamente na vida humana, agindo apesar ou até contra as pessoas. Por outro lado, ela traz o constante desafio para que as pessoas tentem descobrir o projeto de Deus e agir de acordo com ele. As coisas não são fáceis como parecem, pois, nessa visão teológica Deus age através do discernimento e da ação do homem, sem que ninguém possa “por a + b” dizer que o que Deus quer é exatamente o que as pessoas estão fazendo. Daí a necessidade do critério apontado por José em 47,7 e 50,20: o que os homens estão fazendo produz a libertação e a vida para todo o povo? O difícil é que não há certezas que, de antemão, assegurem que Deus está querendo isso. As certezas humanas só conseguem reconhecer uma ação divina depois que ela aconteceu. E o importante é não esquecer que, mesmo sendo isso instrumento da ação de Deus, José diz: “por acaso eu estou no lugar de Deus?” (50,19). Isso mostra o maior limite de qualquer pessoa humana: ninguém pode arrogar para si aquilo que pertence a Deus ou, em outras palavras, ninguém pode ter a certeza de o projeto de Deus se esgota na intenção ou ação humana, por melhor que elas sejam.

- Conclusão: a história de José nasceu na corte de Salomão e visava responder perguntas cruciais. Uma delas era uma questão política bastante grave: “Por que, não sendo primogênito, foi Salomão quem herdou o trono de seu pai Davi?”. Se compararmos a história de José com a história da sucessão de Davi (cf. 2Sm 9—20; 1 Rs 1—2), veremos que a mesma teologia é veiculada. Em 2Sm 7 temos a promessa de uma dinastia real para Davi. Contudo, fica a pergunta: “Quem será o sucessor?” Na história da sucessão, o que vamos encontrar é uma acirrada luta pelo poder, e finalmente Salomão se torna rei, graças a uma intriga de corte. Olhando para a história de José e para a teologia aí veiculada, vemos logo qual era a função política dessa história: Salomão é o legítimo herdeiro e foi Deus que quis assim. Em outras palavras, a teologia exposta na história de José se torna justificativa ideológica para o poder salomônico, calcado inteiramente na política, economia e cultura egípcias.

Tal utilização ideológica não quer dizer que a teologia exposta na história de José não possa ter outros usos. O importante é percebermos que qualquer teologia pode ser usada ideologicamente para mascarar a realidade e tornar aceitáveis até a própria escravidão e a morte. Não podemos esquecer que o critério de julgamento de qualquer teologia é sempre o projeto de Deus.

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