A História de José
No lugar em que atualmente se encontra, a história
de José apresenta-se claramente como ponte entre as narrativas patriarcais e o
relato do livro do Êxodo. Na sua origem, porém, é uma história acabada e
escrita pela sapiencial da corte de Salomão. Sabemos que Salomão adotou tanto a
cultura como a política egípcias. A história de José visava justificar esse
estado de coisas, principalmente a entrada da cultura e política egípcias, e
até mesmo uma nova concepção sobre o modo como Deus age na história.
- O irmão indesejável (cp.
37). O início da história de José é dramático e já aponta para o seu
desenvolvimento posterior. José, filho de Jacó e Raquel, é o preferido do pai,
e sua “túnica de mangas longas” é roupa de festa, sinal de que José não
precisava trabalhar, e ainda dedurava os irmãos. Não bastasse isso, os sonhos,
que ele ingenuamente conta para a família, acabam suscitando raiva e ciúme,
pois tais sonhos indicam claramente a sua supremacia (37,1-11).
A reação dos irmãos logo se faz sentir, e agora a
narrativa se encaminha para o lugar onde tudo mais vai acontecer: o Egito
(37,22-36). Na trama montada pelos irmãos sobressaem Ruben e Judá, que voltarão
mais tarde com importante papel nessa história.
- Judá e Tamar (cp. 38). Gn 38 é um texto deslocado que
ficaria melhor depois de Gn 36. Embora estrangeira como Rute, Tamar foi
incorporada ao povo de Deus e, através de seu filho Farés, tornou-se
antepassada do rei Davi (cf. Rt 4,12.18-22), e também fará parte da genealogia
de Jesus (cf. Mt 1,3).
O texto mostra como funcionava a lei do levirato: quando o marido morria
sem deixar filhos, seu irmão era obrigado por lei a se unir com a viúva, e o
filho que nascesse seria considerado como filho do irmão morto. Essa lei visava
conservar a herança no âmbito da família (cf. Dt 25,5-10). Onã é condenado por
violar essa lei.
O importante é notar como a Bíblia considera grave
uma falta contra a justiça. Podemos ficar admirados com o ato de Onã (coito
interrompido) ou com a atitude Judá e Tamar (prostituição). Acima de tudo isso,
porém, está a justiça prevista pela lei e à qual o texto dá toda a importância.
- Providência de Deus e
providência do homem (caps. 39-41) A história de José prossegue em descida cada vez
maior. Além de estar longe do pai, do qual era preferido, perde a liberdade, e
de escravo torna-se prisioneiro. Todavia, por quatro vezes o autor salienta que
“Deus estava com José”. Assim, o
relato frisa um pormenor: qualquer pessoa pode estar sendo instrumento de Deus
e, através dela, Deus espalha suas bênçãos para todos que a cercam.
Na prisão (Gn 40), José continua sua trajetória de
homem privilegiado: é ele que praticamente supervisiona a prisão. Desta forma,
o autor vai sempre mostrando que José é o escolhido de Deus para grandes
coisas.
Para os antigos, o sonho era uma mensagem cifrada
em que Deus se manifestava ao homem e revelava o futuro. O significado do
sonho, porém, só podia ser interpretado por Deus (40,8; 41,16). Mostrando que
José é capaz de interpretar os sonhos, o texto afirma que ele sabe discernir a
ação de Deus na história, isto é, sabe ler o que Deus está para realizar.
Contudo, o seu exílio na prisão continua, pois ninguém se lembra dele.
Os sonhos do Faraó tornam-se a ocasião concreta
para a ascensão de José. Além de mostrar discernimento para interpretar os
sonhos, e perceber a ação de Deus, José demonstra também o tino administrativo
que poderá salvar o país da fome (41,33-36). Com isso, fica provado que José é
sábio: é capaz de discernir a ação de Deus e agir de acordo. De fato, fica
assim completada a obra da graça: Deus providencia, mas sua ação não dispensa
nem a inteligência, nem a ação do homem. Não basta esperar que Deus dê tudo
pronto; é preciso analisar as situações, descobrir a presença e a ação de Deus,
e tomar atitudes adequadas.
Por seu discernimento e tino administrativo, José
se torna vice-rei do Egito. Graças a ele, a situação de fome é contida e a fama
nacional e internacional se torna realidade. Seus filhos Manasses e Efraim se tornarão,
mais tarde, duas tribos de Israel, formando a “Casa de José”.
Toda essa fase da vida de José pode ser vista em Pr
22,29: “Você já viu um homem perito no
seu trabalho? Ele será contratado para servir a reis, e não pessoas sem
importância”.
- Teste de fidelidade (caps.
42-44). Prepara-se, pouco a pouco, o ponto máximo da narrativa. Como era
prenunciado em seus sonhos, José se torna uma pessoa importante, não só para o
Egito, mas também para os países vizinhos. Naqueles sonhos estava anunciado que
sua família se prostraria diante dele (cf. 37,5-11). Chegou o momento! José
recebe os irmãos como um verdadeiro soberano, e a narrativa é dramática porque
ele os reconhece, mas eles não. Segue-se uma dura prova para verificar se os
irmãos se arrependeram do que lhe haviam feito. O que José quer de fato saber é
se agora os irmãos são capazes de agir com fraternidade (42,1-38). Simeão é
escolhido como refém, pois era o segundo filho, e José fica sabendo que Ruben,
o mais velho, não era culpado. Como José, Benjamim era filho de Raquel, a
esposa amada de Jacó. José quer ver como é que os irmãos são capazes de tratar
o irmão mais novo. Será que odeiam Benjamim como odiaram José?
O dinheiro, colocado de volta junto aos
mantimentos, testemunha a bondade de José para com a família; ele está fazendo
um dom e não uma venda. Os irmãos, porém, ficam temerosos: depois de serem
tratados com severidade por um “desconhecido”, o que significaria dinheiro
junto com os mantimentos? O segundo encontro (Gn 43) é um encontro alegre.
Agora todos os irmãos estão juntos, embora se conserve a etiqueta: comem em
mesas separadas, o que não impede a José de mostrar simpatia, principalmente em
relação a Benjamim. O teste, porém, continua, e desta vez mais radical (Gn 44).
A taça colocada na saca de Benjamim alude claramente a um possível roubo, que
deverá ser pago pelo próprio Benjamim. E agora? É o momento da grande confissão
feita por Judá, que fora responsável pela venda de José como escravo (cf.
37,26-27). É o ponto alto da narrativa, Judá se dispõe a ficar no lugar de Benjamim
(44,33-34). Com isso, o teste chega ao fim: os irmãos estão dispostos a assumir
a responsabilidade pelo irmão.
- Política agrária de José (Gn
47,13-26). Esse texto tem a finalidade claramente ideológica. De fato, ele mostra
a política agrária dos faraós, que também foi implantada em Israel no tempo do
rei Salomão. Dizendo que essa política fora criada por um patriarca israelita
(José), o relato visa justificar a situação do povo e da terra no tempo de
Salomão. Note-se o empobrecimento progressivo do povo e modo como ele chega
finalmente a se tornar escravo do poder político: primeiro, perde o dinheiro,
depois, perde o rebanho; em seguida, perde a terra e a liberdade. Finalmente,
depois de perder tudo, recebe sementes para plantar na terra do Faraó e pagar
como tributo a quinta parte da colheita! (Cf. 47,25). Vale a pena ser escravo
para sobreviver?
- A ação de Deus na história
(caps. 45-50). No auge do encontro, José se dá a conhecer aos irmãos, e a narrativa
caminha agora para mostrar como os hebreus se fixaram no Egito. Trata-se
certamente de uma idealização da história. Na verdade, muitas levas de
migrantes foram forçadas a procurar o Egito a fim de sobreviver. Dessa forma, o
livro do Gn prepara a narrativa do livro do Ex, as últimas palavras de José
alude à libertação do Egito (cf. 50,24-25).
A história de José, como podemos ver, é muito bela
e humana. Contudo, o ponto principal é que ela veicula uma nova concepção
teológica sobre o modo como Deus age na história: Deus não age diretamente, mas
através das ações dos homens e das circunstâncias que muitas vezes passam
despercebidas para as próprias pessoas que nelas estão envolvidas. Dois textos
importantes para percebermos essa teologia. O primeiro é quando José se revela
aos irmãos: 45,5-8. O outro texto aparece no fim, quando morre Jacó, e os
irmãos temem que José se vingue deles: 50,19-20.
Esses dois textos mostram como a teologia na época
de Salomão evoluiu. Antes, a ação de Deus era vista como intervenção direta e
especial em certos momentos da história. No tempo de Salomão, caracterizado por
um grande desenvolvimento da cultura, aparece uma concepção teológica mais
secularizada. Segundo a história de José, Deus está presente de uma forma quase
imperceptível e anônima, dirigindo todos os acontecimentos que se processam
através da ação humana. Em outras palavras, Deus está agindo sempre, mesmo que
as pessoas não percebam. Deus age através delas, mesmo que as intenções humanas
queiram produzir o contrário do que será o projeto de Deus.
A essa altura podemos perguntar: qual o critério
para distinguir a ação de Deus, se ela ultrapassa as próprias intenções
humanas? O critério deve ser buscado no significado que os acontecimentos têm
para liberdade e a vida do grupo humano. O autor tinha salientado várias vezes
a questão da fome, tanto no Egito como nos países vizinhos e em Canaã. Ora, é
justamente a libertação da fome que leva os hebreus para o Egito. O sinal da
ação divina, libertando, é mencionado duas vezes por José (45,7; 50,20). Dessa
forma, podemos dizer que a ação de Deus está sempre voltada para a liberdade e
a vida, mesmo que os homens muitas vezes queiram desviá-la, para produzir
escravidão e morte.
Qual a importância dessa visão teológica? Ela
certamente é muito realista para não cair na ingenuidade de conceber um Deus
que se intrometa arbitrariamente na vida humana, agindo apesar ou até contra as
pessoas. Por outro lado, ela traz o constante desafio para que as pessoas
tentem descobrir o projeto de Deus e agir de acordo com ele. As coisas não são
fáceis como parecem, pois, nessa visão teológica Deus age através do
discernimento e da ação do homem, sem que ninguém possa “por a + b” dizer que o
que Deus quer é exatamente o que as pessoas estão fazendo. Daí a necessidade do
critério apontado por José em 47,7 e 50,20: o que os homens estão fazendo
produz a libertação e a vida para todo o povo? O difícil é que não há certezas
que, de antemão, assegurem que Deus está querendo isso. As certezas humanas só
conseguem reconhecer uma ação divina depois que ela aconteceu. E o importante é
não esquecer que, mesmo sendo isso instrumento da ação de Deus, José diz: “por
acaso eu estou no lugar de Deus?” (50,19). Isso mostra o maior limite de
qualquer pessoa humana: ninguém pode arrogar para si aquilo que pertence a Deus
ou, em outras palavras, ninguém pode ter a certeza de o projeto de Deus se
esgota na intenção ou ação humana, por melhor que elas sejam.
- Conclusão: a história de José nasceu na
corte de Salomão e visava responder perguntas cruciais. Uma delas era uma
questão política bastante grave: “Por que, não sendo primogênito, foi Salomão
quem herdou o trono de seu pai Davi?”. Se compararmos a história de José com a
história da sucessão de Davi (cf. 2Sm 9—20; 1 Rs 1—2), veremos que a mesma
teologia é veiculada. Em 2Sm 7 temos a promessa de uma dinastia real para Davi.
Contudo, fica a pergunta: “Quem será o sucessor?” Na história da sucessão, o
que vamos encontrar é uma acirrada luta pelo poder, e finalmente Salomão se
torna rei, graças a uma intriga de corte. Olhando para a história de José e
para a teologia aí veiculada, vemos logo qual era a função política dessa
história: Salomão é o legítimo herdeiro e foi Deus que quis assim. Em outras
palavras, a teologia exposta na
história de José se torna justificativa
ideológica para o poder salomônico, calcado inteiramente na política,
economia e cultura egípcias.
Tal utilização ideológica não quer dizer que a
teologia exposta na história de José não possa ter outros usos. O importante é
percebermos que qualquer teologia pode ser usada ideologicamente para mascarar
a realidade e tornar aceitáveis até a própria escravidão e a morte. Não podemos
esquecer que o critério de julgamento de qualquer teologia é sempre o projeto
de Deus.
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