Os Mandamentos – Introdução – Obras de Misericórdia e Conselhos Evangélicos


CIC = Catecismo da Igreja Católica   

 

Depois de refletirmos sobre os artigos do credo, voltamo-nos sobre os mandamentos. Estes são parte da nossa profissão de fé, pois quem crer nas verdades reveladas por Deus e não se empenhe em observar Suas leis é mentiroso e hipócrita. É muito fácil dizer “Creio”; mas as nossas obras devem ser a prova irrefutável da nossa fé. Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor, entrará no reino dos céus; mas somente o que faz a vontade de meu Pai que está nos céus (Mt 7,21).

A lei de Deus não se compõe de arbitrários “faça isto” e “faça aquilo”, com o objetivo de nos aborrecer ou podar a nossa liberdade. É verdade que ela põe em prova a fortaleza de nossa fibra moral, mas não é esse o seu objetivo primordial. A lei de Deus é a expressão do seu amor e sabedoria infinitos (cf. CIC n. 2067).

Poderíamos pensar um mundo onde todos obedecessem à lei de Deus, para percebermos quantas estruturas e situações que constatamos não precisariam existir. Sabemos que, como conseqüência do pecado original, este mundo belo e feliz jamais existirá. Mas, individualmente, pode existir para cada um de nós. Nós, como a humanidade no seu conjunto, encontraríamos a verdadeira felicidade, mesmo neste mundo, se identificássemos a nossa vontade com a de Deus. Fomos feitos para amar a Deus aqui e na eternidade. Este é o fim da nossa existência, nisso encontramos a nossa felicidade. E Jesus dá-nos as instruções para conseguirmos essa felicidade com simplicidade absoluta: Se me amais, observareis os meus mandamentos (Jo 14,15).

A lei de Deus que rege a conduta humana chama-se lei moral, do latim mores, que significa modo de agir. A lei moral é diferente das leis físicas, pelas quais Deus governa o resto do universo, nestas não há liberdade de escolha, enquanto a lei moral atua dentro do marco do livre arbítrio. Se não fôssemos fisicamente livres, não poderíamos ter mérito. Se não tivéssemos a nossa liberdade, a nossa obediência não poderia ser um ato de amor.

Ao considerarem a lei divina, os moralistas distinguem entre lei natural e lei positiva. A reverência dos filhos para com os pais, a fidelidade matrimonial, o respeito à pessoa e à propriedade alheias pertencem à própria natureza humana. Esta conduta, que a consciência do homem – o seu juízo guiado pela justa razão – aplaude, chama-se lei natural. Comportar-se assim seria bom, o contrário, mau, ainda que Deus não no-lo tivesse declarado expressamente. Mesmo que não existisse o sexto mandamento, o adultério seria mau. Uma violação da lei natural é má intrinsecamente, quer dizer, má por sua própria natureza. Já era má antes que Deus desse a Moisés os dez mandamentos no Monte Sinai.

Além da lei natural, existe a lei divina positiva, que agrupa todas aquelas ações que são boas porque Deus mandou para o nosso bem, e más porque Ele as proibiu igualmente para o nosso bem. São as ações cuja necessidade para sermos bons não está na própria raiz da natureza humana, mas que foram ordenadas por Deus para aperfeiçoar o homem segundo os seus desígnios.

Quer consideremos uma ou outra lei, a nossa felicidade depende da obediência a Deus (cf. CIC n. 2052). Se queres entrar na vida, guarda os mandamentos (Mt 19,17).

Amar significa não ter em conta o que as coisas custam. Uma mãe jamais pensa em medir os esforços e os desvelos que dedica a seus filhos; um esposo não leva em conta a fadiga que lhe custa velar pela esposa doente. Amor e sacrifício são termos quase sinônimos. Por essa razão, Jesus resumiu toda a lei de Deus em dois grandes mandamentos (cf. Mt 22,35-40). Na realidade, o segundo mandamento está contido no primeiro, porque, se amamos a Deus com todo o coração e com toda a alma, amaremos aquele que, atual ou potencialmente, possui uma participação na bondade divina, e queremos para ele o que Deus quer. Também nos amaremos retamente a nós mesmos, querendo para nós o que Deus quer. Como o amor por nós é a medida do nosso amor ao próximo, desejaremos para o nosso próximo o que desejamos para nós. Queremos que o próximo cresça em amor a Deus, que cresça em santidade. Queremos também que alcance a felicidade eterna para a qual Deus o criou.

Isso significa, por sua vez, que teremos que odiar qualquer coisa que separe o próximo de Deus. Odiaremos as injustiças e os males feitos pelo homem, que podem ser obstáculos para o seu crescimento em santidade.

Nos Dez mandamentos encontramos os nossos principais deveres para com Deus, para com o próximo e para conosco próprio. Os três primeiros declararam nossos deveres para com Deus; os outros sete indicam os principais deveres para com o nosso próximo e, indiretamente, para conosco próprios. Sua origem remonta a Moisés, dados por Deus a este no Monte Sinai, ratificados pelo próprio Jesus: Não julgueis que vim abolir a Lei ou os profetas; não vim destruir, mas cumpri-los (Mt 5,17). CIC 2072.

Jesus aperfeiçoa a Lei de duas maneiras. Em primeiro lugar fixa-nos alguns deveres concretos para com Deus e para com o próximo. Estes deveres, dispersos nos evangelhos e nas epístolas, são os que se relacionam nas obras de misericórdia corporais e espirituais. Em segundo lugar, Jesus esclarece esses deveres dando à sua Igreja o direito e o dever de interpretar e aplicar na prática a lei divina, o que se concretiza nos denominados mandamentos da Igreja.

Os mandamentos da Igreja não são novas cargas adicionais que nos obriguem por cima e para além dos mandamentos divinos. As leis da Igreja não são mais do que interpretações e aplicações concretas da lei de Deus. Por exemplo. Deus ordena que dediquemos algum tempo ao seu culto. Nós poderíamos dizer: “Sim, quero fazê-lo, mas como? ” E a Igreja responde: “Indo à Missa aos domingos e dias de guarda”. Este fato, o fato das leis da Igreja não serem se não aplicações práticas das leis divinas, é um ponto que merece ser destacado. Há pessoas, até católicas, que raciocinam distinguindo as leis de Deus das leis da Igreja, como se Deus pudesse está em oposição consigo mesmo.

Aqui temos, pois, as diretrizes divinas que nos dizem como aperfeiçoar a nossa natureza, como cumprir a nossa vocação de almas redimidas: os Dez mandamentos de Deus, as sete obras de misericórdia corporais e sete espirituais, e os mandamentos da Igreja de Deus. Todos eles, é claro, prescrevem somente o mínimo em santidade. O autêntico amor a Deus supera a letra da lei, indo ao seu espírito. Devemos esforçar-nos por fazer não só o que é bom, mas o que é perfeito. Aos que não tem medo de voar alto, o Senhor propõe a observância dos chamados conselhos evangélicos: pobreza voluntária, castidade perpétua e obediência perfeita.

Falaremos de cada um deles – dos Mandamentos de Deus e da sua Igreja, das obras de misericórdia e dos conselhos evangélicos – a seu devido tempo. E, dado que o lado positivo é menos conhecido que as proibições, comecemos com as obras de misericórdia.

 

As obras de misericórdia.

 

Guardar-se do pecado é apenas um lado da moeda da virtude. É algo necessário, mas não suficiente. O amor a Deus e ao próximo vai muito mais longe. Para começar, temos as obras de misericórdias corporais (cf. 2447-2449). Chamam-se assim porque dizem respeito ao bem-estar físico e temporal do próximo. Respingadas das Sagradas escrituras, são sete: (1) visitar e cuidar dos enfermos; (2) dar de comer e quem tem fome; (3) dar de beber aquém tem sede; (4) dar pousada aos peregrinos; (5) vestir os nus; (6) redimir os cativos; (7) enterrar os mortos. Na sua descrição do Juízo Final (Mt 25,34-40), Cristo estabelece o seu cumprimento como prova de nosso amor por Ele.

Quando nos detemos a examinar a maneira de cumprir as obras de misericórdia corporais, vemos que são três as vias pelas quais podemos dirigir nossos esforços. Primeiro, temos o que se poderia chamar a “caridade organizada”. Nas nossas cidades modernas, é muito fácil esquecer o pobre e o desgraçado, perdido entre a multidão. Mais ainda, algumas necessidades são demasiado grandes para que possam ser remediadas por uma só pessoa. E assim contamos com muitos tipos de organizações para as mais diversas atenções sociais, a que os necessitados podem recorrer. Quando ajudamos, quer diretamente, quer por meio de coletas ou campanhas, cumprimos uma parte das nossas obrigações para com o próximo, mas não todas.

Outro modo é colaborar em movimentos pela promoção cívica e social. Se nos preocupamos de melhorar a habitação das famílias pobres; se trabalhamos para atenuar as injustiças que pesam sobre os migrantes do campo, etc. se prestamos a nossa cooperação ativa a organizações cujo objetivo é tornar a vida do próximo um pouco menos pesada, estamos praticando as obras de misericórdia corporais.

A terceira via é aquela de prestar ajuda direta e pessoal aos nossos irmãos sempre que se apresente a oportunidade – ou, melhor dito, o privilégio. Sejam quais forem os esforços necessários realizados no nível das causas, ficará sempre uma margem ampla e inevitável de infortúnios (doenças, acidentes, solidões, inadaptações, discriminações, incompreensões, irresponsabilidades etc.) que em nada derivam das lacunas de um sistema social, econômico ou outro. E em função desses infortúnios o modelo do samaritano de Lc, mesmo lido de maneira mais literal, permanece inteiramente pertinente e inspirador. Tudo isso para que a nossa relação com o próximo não fique no nível do abstrato.

Entra aqui a dimensão do amor a Cristo com que praticamos tais obras. O mérito ou demérito do pobre não nos deve preocupar excessivamente. Não podemos fomentar a vadiagem dando esmolas com imprudência; mas devemos ter em conta que negar a nossa ajuda a uma família necessitada por ser “uma coleção de inúteis”, porque “o pai bebe” ou a “mãe não é boa dona de casa” (o que equivale a castigar a criança pelos defeitos dos pais), é por em perigo a salvação de nossa alma. A verdade não é menos exigente que isso.

Além do elemento material tão necessário, é possível realizar obras de misericórdia de outras maneiras. Se visitar os presos já não é algo tão simples assim em nossos tempos é sempre possível colaborar com as atividades da pastoral carcerária, dar uma assistência jurídica ou mesmo fazer algo pela família do preso. Melhor que isso seria procurar que não se chegasse a essa situação estando atento as iniciativas que são preventivas em nossa sociedade.

Nossas visitas podem não curar um enfermo, mas confortam e animam; nosso auxílio aos que dele devem cuidar tem um mérito muito grande. Nossa presença num velório é não somente um conforto para família, mas um honrar também a Cristo cuja graça santificou o corpo ao qual oferecemos nossos últimos respeitos.

As obras de misericórdia espirituais são tradicionalmente sete: (1) ensinar a quem não sabe; (2) dar bom conselho a quem dele necessita; (3) corrigir quem erra; (4) perdoar as injúrias; (5) consolar os tristes; (6) sofrer com paciência os defeitos do próximo; (7) rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos.

A capacidade intelectual é um dom a ser utilizado e partilhado. Aqui os pais e mestres têm um papel importante. Na formação da verdade, no conhecimento religioso. Ao darmos conselho é importante estarmos seguros de estamos sendo sinceros, desinteressados e baseados nos princípios da fé; de que não escolhemos o caminho fácil de dar a quem nos escuta o conselho que quer ouvir, sem ter em conta o seu valor.

A correção dos erros por pais e mestres é um dever muito claro; o que nem sempre enxergamos com a mesma clareza é que o exemplo é sempre mais convincente que as admoestações.  A responsabilidade de conduzir os outros para a virtude é algo que toca a todos, de acordo com a nossa maior ou menor autoridade. É um dever que temos de exercer com prudência e inteligência. É essencial que façamos a nossa correção com delicadeza e com carinho, tendo bem presentes as nossas próprias faltas e fraquezas. Prudência não quer dizer covardia (cf. Tg 5,19-20).

O sofrimento das injurias talvez seja a parte mais complicada. Tudo o que temos de humano, tudo o que nos é natural se subleva contra o motorista imprudente que nos fecha a passagem, contra o amigo que nos atraiçoa, contra o vizinho que espalha mentiras sobre nós e por aí vai. É aqui que tocamos o nervo mais sensível do amor próprio. Como o Cristo na cruz, somos chamados a perdoar por não saberem o que fazem. É aqui que o nosso amor a Deus passa pela prova máxima e se vê se o nosso amor ao próximo é autenticamente sobrenatural.

Consolar os tristes é algo que surge espontaneamente em muitos de nós. Se somos seres humanos normais, sentimo-nos naturalmente compadecidos dos aflitos. Mas é essencial que o consolo que oferecemos seja mais que meras palavras e gestos sentimentais. Se podemos fazer alguma coisa para confortar uma pessoa que sofre, não podemos deixar de fazê-lo porque isso nos vai custar aborrecimentos ou sacrifícios. As nossas palavras de consolo serão mil vezes mais eficazes se forem acompanhadas de obras.

Por fim, rogar a Deus pelos vivos e pelos mortos é algo que certamente fazemos, conscientes do que significa ser membro do Corpo Místico de Cristo e da Comunhão dos Santos. Mas aqui também pode meter-se o egoísmo, se as nossas orações se limitam às necessidades da nossa família e dos amigos mais íntimos. A nossa oração, como o amor de Deus, deve abarcar o mundo.

 

Os conselhos evangélicos.

 

De todos os conselhos e diretrizes que se dão no Evangelho, os chamados conselhos evangélicos são os mais perfeitos. A sua observância liberta-nos – na medida em que a natureza humana pode ser livre – dos obstáculos que se opõem ao nosso crescimento em santidade, em amor a Deus. Quem abraça esses conselhos renuncia a uns bens valiosos, mas menores, que no quadro da nossa natureza decaída competem freqüentemente com o amor a Deus.

Ao desposarmos voluntariamente a pobreza, manietamos a cobiça e a ambição, que são instigadoras de tantos pecados contra Deus e contra o próximo. Ao oferecermos a castidade perfeita, subjugamos a carne para que o espírito possa se elevar sem amarras nem divisões até Deus. Ao aderirmos à obediência perfeita, fazemos a mais custosa das renúncias, entregamos o que é mais caro ao homem, mais que a ambição de possuir ou poder procriar: renunciamos ao domínio da nossa própria vontade. Esvaziando de nós mesmos tão completamente quanto possa sê-lo um homem – sem bens, sem família, sem vontade própria –, ficamos livres ao máximo de nossos condicionalismos, para abrir-nos à ação da graça; estamos no chamado caminho da perfeição.

O espírito dos conselhos evangélicos não se encerra dentro dos muros dos conventos e mosteiros. Este espírito é essencial a toda vida autenticamente cristã. A maioria dos cristãos é chamado a vivê-lo de acordo com as circunstâncias, embora só se peça a sua observância absoluta a uns poucos.

É evidente que há muita gente que vive “no mundo” e é muito mais santa que outros que vivem “na religião”, afastados do mundo. É igualmente evidente que ninguém deve pensar que está condenando a uma vida “imperfeita” porque não se tornou frade ou freira. Para cada indivíduo, a vida mais perfeita é aquela à qual Deus chama. Há santas na cozinha como no claustro; há santos no comércio como no convento.

Se tivemos uma sólida formação cristã é normal que em determinado momento de nossa história perguntemos “o que Deus quer de mim? ” Na oração e no aconselhamento vamos descobrindo a nossa vocação.


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