A oração
traduz a suprema expressão da fé viva. Pela oração, a pessoa deixa, como que
atrás de si, o universo de todas as coisas e busca uma relação com “Supremo”. A
oração da ave-maria, tão profundamente assimilada, juntamente com o pai-nosso,
à piedade diuturna dos cristãos desde os primeiros balbucios das crianças,
encerra todas as riquezas do mistério de Deus em Maria. As frases são simples,
mas escondem o dom de Deus que, na história de sua autocomunicação aos homens,
nunca busca os caminhos escarpados e o emaranhado das muitas palavras. Na breve
oração da ave-maria se cristalizou a memória coletiva dos cristãos. Com sua
recitação trazemos à tona da consciência, do louvor e da petição aquilo que se
passa no nível do mistério. Em Maria contemplamos, admirados, uma série de
intervenções divinas que a colocam no centro da vontade autocomunicadora de
Deus.
A oração da ave-maria é composta de
três partes: a primeira é tirada da saudação do anjo Gabriel: “Ave, Maria,
cheia de graça, o Senhor é convosco” (Lc 1,28); a segunda é tomada do
louvor que Isabel faz a Maria: “bendito é o fruto do vosso ventre” (Lc
1,42); a terceira parte é uma invocação da Igreja, de origem bem posterior: “Santa
Maria, mãe de Deus, rogai por nós pecadores, agora e na hora de nossa morte,
amém”. Foi necessário um milênio, do século VI-XVI, para que se chegasse à
fixação atual da ave-maria. Sua história, como de quase todas as grandes
orações populares da Igreja, é cheia de ziguezagues não se sabendo exatamente seus inícios. É
semelhante à devoção a Maria: inicialmente se parece à insignificância de um
pequeno córrego; lentamente vai se avolumando até terminar num caudal
amazônico, expressão do grandioso sentido da fé.
Da piedade popular livre se passa às
prescrições obrigatórias pelos sínodos episcopais. O bispo de Paris Odon, no
sínodo de 1198 prescreve a ave-maria com a mesma obrigação que o pai-nosso e o
credo. O acréscimo “Jesus” ao “bendito fruto do vosso ventre” se
atribui ao Papa Urbano IV (1261-1264). A terceira parte, a invocação da Igreja,
“Santa Maria, mãe de Deus, rogai por nós...” conheceu primeiramente várias
fórmulas. A fórmula que persiste até hoje foi fixada por Pio V em 1568 por
ocasião da reforma litúrgica.
A ave-maria esta ainda associada ao
“ângelus”, costume conservado ainda em muitos paises e, entre nós, em cidades
menores e do interior. Três vezes ao dia, de manhã, ao meio dia e a tardezinha,
por volta das 18 horas, costuma-se tocar o sino e se recitar três vezes a
ave-maria.
A recitação da ave-maria encontrou
seu contexto melhor no rosário. Este é composto de 150 ave-marias; cada dez são
intercaladas por um Pai-nosso e um glória ao Pai, em cada dezena se enuncia um
mistério de nossa redenção e libertação. Normalmente se recita a terça parte do
rosário, vale dizer, 50 ave-marias com cinco glória ao Pai.
O rosário de ave-marias deriva do
rosário de pai-nossos. Este último foi introduzido, provavelmente, por S.
Bento; monges pouco letrados, que não conseguiam recitar os 150 salmos em
latim, rezavam em substituição 150 pai-nossos. Para se facilitar a contagem, se
usavam grãos enfiados em um cordão. A implantação definitiva se deu com o Papa
Pio V. Os papas posteriores como Leão XIII, Pio X e Pio XI estimularam
enormemente a devoção, confirmada mais e mais pelas aparições da Virgem em
Lourdes e Fátima, trazendo em suas mãos um rosário pendente[1].
A estrutura da ave-maria é muito
elucidativa de toda verdadeira oração cristã. O 1o impulso arranca
para o céu em hino de louvor: canta a gesta (ação) de Deus feita em Maria.
Embora a referência seja Mariana, o centro, entretanto, é ocupado por Deus,
autor das maravilhas operadas na bendita entre as mulheres. A segunda parte
toma em conta a tragédia humana onde há pecado e morte. Pedimos socorro.É a
consciência de nossa fragilidade e incapacidades salvífica. Nisso tudo não vai
nenhuma amargura ou ressentimento; a situação decadente é assumida à luz de
Deus e de Maria; entregamo-nos, confiados, porque pudemos antes louvar e
agradecer. O Deus que tão eficazmente agira em Maria, como não iria ter
misericórdia de seus filhos pecadores e condenados à morte? Por isso terminamos
com um firme e consolador amém. Poder dizer amém supõe reconhecer o senhorio
soberano de Deus. Tudo o que Ele faz, está bem feito, apesar dos caminhos
tortuosos e das fadigas de nossa compreensão. Nosso amém terreno no final da
ave-maria se une ao Amém de Deus e faz eco ao Amém da nossa grande e bondosa
Mãe do céu. Amém!
(Fonte:
“A Ave-Maria – o feminino e o Espírito Santo” – Leonardo Boff – Editora Vozes.)
[1] Em outubro de 2002 o Papa João Paulo II sugere a inserção dos
mistérios luminosos (vida pública de Jesus), para dar uma expressão ainda maior
do rosário como “compêndio do evangelho”, de uma oração também cristológica.
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