* Síntese baseada no livro “Maria na Igreja em Oração”, de Corrado Maggioni, Paulus, 1998.
Introdução: Antes do concílio Vat. II era comum ouvir como
refrão o slongan “de Maria nunca se
fala suficientemente”. Nascia daí um desafio a quem criava as tiradas mais
geniais, os paradoxos mais ousados, as expressões mais floreadas, para exaltar
as grandezas de Maria. E se às vezes fosse possível encontrar por acaso alguma
pérola de inteligência teológica e espiritual e algum lampejo de poesia, não
poucas vezes, porém, deparava-se com banalidades, exageros e extravagâncias que
causavam embaraços, para além do bom gosto e da ortodoxia. Uma extravagância
fora de qualquer dúvida era aquela em que alguém havia planejado um calendário
com uma festa mariana para cada dia do ano, sem se preocupar minimamente não só
com o ano litúrgico, mas também com o bom senso da fé.
Um
pároco que queira trabalhar por um sadio crescimento da própria comunidade na
fé cristã, com certeza encontra no amor à Mãe do Senhor um poderoso meio. A
devoção mariana não leva a Jesus sempre e simplesmente. É necessário que ela
proceda da fé verdadeira, isto é, alimentada substancialmente, celebrada
adequadamente, por fim concretizada na caridade de modo coerente. Aos
sacerdotes se poderia perguntar: Qual é o nutrimento que damos à piedade
mariana dos fiéis? Com que freqüência, em vez de alimento sólido e
substanciosos da palavra de Deus, das orações litúrgicas, dos escritos dos
Padres e dos autores espirituais mais conceituados, oferecemos, para a refeição
do nosso povo, somente guloseimas insípidas e inverossímeis?
João
Paulo II procurou dar à prática do Rosário a verdadeira ligação entre os
grandes mistérios da nossa salvação, a fé de Maria e a nossa. Temos a prática
das romarias sem conta a “lugares santos” verdadeiros ou supostos. Qual o
fundamento, o conteúdo, a nutrição da espiritualidade destas romarias? Em
muitas peregrinações de devoção e oração, mais que buscar inspiração na palavra
de Deus, as pessoas se inspiram em “mensagens” que merecem até grande
consideração, mas, mesmo na melhor das hipóteses, jamais poderão acrescentar
algo à revelação autêntica que é o evangelho. Temos ainda as festas marianas,
que gozam de grande aceitação e freqüentemente são celebradas com solenidades
espetaculares, na maioria das vezes de cunho local, que fazem referência a
acontecimentos extra-bíblicos, graciosos e delicados não se pode negar, mas não
diretamente ligados ao mistério pascal. Podemos com honestidade perguntar se as
próprias solenidades dogmáticas da Imaculada e da Assunção foram sempre
entendidas na sua estreita conexão com o mistério da Encarnação, a primeira, e
com a Ressurreição e a Ascensão de Cristo, a outra.
Em
palavras simples, que ligação o nosso povo faz e é ajudado a fazer entre a
existência de Maria e a existência salvífica de Cristo? Entre as festas
marianas e o ano litúrgico? E como as festas marianas podem favorecer a
compreensão cada vez maior do mistério de Cristo nascido, morto e ressuscitado
por nós? Estas, ou semelhantes, são as interrogações da pastoral que diz
respeito à piedade mariana. E não se trata de questões de pouco valor. Está em
jogo a autêntica eficácia da devoção a Maria como caminho para encontrar Cristo
Senhor.
1. O culto à bem-aventurada Virgem Maria. O culto mariano
tem início com o próprio culto cristão por causa da necessária referência a
Maria exigida pelo mistério histórico e litúrgico de Jesus Cristo. É certo que
não temos documentação além de alguns simples, mas importantes indícios, a
começar pelas páginas do NT. As expressões evangélicas referentes a Maria foram
retomadas de modo variado em orações, antífonas, responsórios, hinos, que
atravessaram a piedade litúrgica mariana da Igreja, tanto no Oriente, quanto no
Ocidente. Pode-se, pois, com razão pensar que à revelação do Deus feito homem
contida nos evangelhos e ao conhecimento de Maria por parte dos primeiros
discípulos do Senhor, tenha correspondido, desde sempre, no ato de fazer
memória litúrgica dos mistérios de Cristo, certa comemoração também de sua
Virgem Mãe.
A
recordação mais antiga de Maria vem das celebrações pascais. Na sua homilia
sobre a Páscoa, Melitão de Sardes (+ 180) é o primeiro, em contexto litúrgico,
a testemunhar como os mistérios da encarnação-paixão-glória de Cristo são
momentos da única economia celebrada pela Igreja, que envolve também a
maternidade da Virgem. Tem excepcional importância a oração mariana do Sub tuum praesidum, escrita em grego num
papiro egípcio que remonta ao sec. III: nessa oração, bem antes do solene
pronunciamento de Éfeso (431), Maria é invocada com o título de “Mãe de Deus”.
No
séc. IV, a consolidação da festividade do Natal do Senhor – precedida, conforme
os lugares, por um período de preparação iluminada pelos mistérios da
Anunciação e visitação – constitui o núcleo do florescimento cultual para com a
Mãe do Senhor. Pelos textos litúrgicos que chegaram até nós, deduz-se
claramente que o Natal de Cristo é, ao mesmo tempo, a primordial festa em honra
de Maria. De resto os Padres dos primeiros séculos, refletindo sobre a
encarnação, demonstram compreender que a pessoa de Cristo e da Virgem são
inseparáveis.
Aos
poucos, em momentos preponderantemente fecundos da organização do ciclo
litúrgico anual, surgiram e se desenvolveram, de uma Igreja a outra,
festividades expressamente marianas. No séc. VII a Igreja de Roma introduziu as
quatro festas, provindas do Oriente, que durante séculos representaram os
fulcros da piedade eclesial para com Maria: a Apresentação (2 de fevereiro), a
Anunciação (25 de março), a Assunção (15 de agosto) e a Natividade (8 de
setembro). Os dogmas marianos, amadurecidos no meio das grandes controvérsias
cristológicas e mariológicas, encontraram na liturgia o seu ponto de ancoragem
e a sua caixa de ressonância (por exemplo, virgindade e maternidade divina), ou
então o seu campo de verificação e de promoção (por exemplo, imaculada,
assunção). Foi levando em conta as tradições rituais das Igrejas, a extensão
das celebrações locais, as figuras carismáticas em acentuada doutrina mariana,
os pronunciamentos de concílios ou dos Pontífices romanos, os movimentos de
devoção a um aspecto particular do mistério de Maria, que a liturgia se
enriqueceu ao longo do tempo com as celebrações que hoje conhecemos.
2. Horizonte teológico-litúrgico do culto mariano. Se a
piedade mariana pertence à Igreja desde a antiguidade, somente em tempos
relativamente recentes a reflexão teológica a respeito da veneração de Maria na
celebração do mistério de Cristo encontrou significativa expressão. Isso foi
sublinhado por Paulo VI no Discurso de encerramento da III sessão do concílio
Vat. II: “É a primeira vez (...) que um concílio ecumênico apresenta uma
síntese tão vasta da doutrina católica no que concerne ao lugar que Maria
santíssima ocupa no mistério de Cristo e da Igreja”. Essa ponderação conciliar
encontrou a sua correspondente repercussão na oração litúrgica (revisão do
Calendário e dos livros litúrgicos).
O
concílio Vat. II recentralizou o culto mariano sobre o mistério de Cristo
celebrado na liturgia. E a reforma litúrgica que daí derivou recebeu e traduziu
em oração a renovada compreensão conciliar do mistério de Maria na história da
salvação. A primeira fonte onde captar o horizonte teológico-litúrgico do culto
mariano são, portanto, os livros litúrgicos: o Missal, o Lecionário, os Rituais
dos sacramentos, a Liturgia das Horas, a Coletânea de Missas de Nossa Senhora
(publicada em 1987). Não faltaram, naqueles anos após o concílio, numerosos
estudos sobre Maria na liturgia, aprofundando conteúdos e implicações que
emergiam dos textos bíblicos e de orações, como da própria dinâmica da
celebração eclesial. A conclusão que se deduz daí pode ser resumida na
afirmação de que os livros litúrgicos são uma fonte importante da
espiritualidade mariana da Igreja.
O
culto à Mãe do Senhor se insere, pois, conforme o modo que lhe é peculiar, na
dinâmica teológica que caracteriza a liturgia como ação de Cristo e da Igreja
(cf. Sacrossanctum Concilium (SC) n.
07). Sob esta ótica, a consideração de Maria no contexto litúrgico está imbuída
da relação com os mistérios de Cristo e da Igreja, como foi ressaltado pelo
breve, mas intenso texto conciliar da SC n. 103, explicado, nos seus conteúdos
litúrgicos implícitos, pela exortação apostólica de Paulo VI, Marialis cultus (MC), principalmente nn.
1-23, redigida à luz da rica doutrina mariológica do cap. VII da Lumem gentium (LG), nn. 52.55-59.66.
Ulterior descrição das coordenadas acerca de Maria e a liturgia encontra-se na Introdução à Coletânea de Missas de Nossa
Senhora e ao correspondente
Lecionário. Útil, enfim, sobretudo do ponto de vista pastoral, a Carta da
Congregação para o Culto Divino Orientações
e propostas para a celebração do ano mariano (OPCAM). Finalmente, os dados
fundamentais sobre o culto mariano emergentes dos documentos recém-citados
aparecem no Catecismo da Igreja Católica
(CIC) (cf. nn. 1172, 1370, 2617-2619, 2673-2679).
O
vínculo indissolúvel que une Maria a Cristo, seu Filho e nosso Redentor, é,
portanto, o primeiro e fundamental
critério com que se exprime a veneração eclesial a Maria. À luz dos
mistérios da vida de Cristo professamos no Símbolo – credo – (encarnado por nós
homens e pela nossa salvação, crucificado e ressuscitado, esperado no último
dia) a Igreja crê na Virgem Maria, celebra-a e imita suas virtudes. O culto da
Mãe do Senhor dá início assim, por um lado, à contemplação da economia
salvífica realizada pelo Pai, por meio do seu Filho, no poder do Espírito Santo
e, por outro, à compreensão de que a existência humana de Maria de Nazaré se
apresenta como paradigma para a antropologia cristã (a humanidade diante de
Deus).
O
segundo iniludível critério que sustenta a piedade litúrgica
para com a Virgem é constituído pelo horizonte eclesiológico. Mãe e filha da
Igreja, sua figura e modelo, Maria é a primícia e ao mesmo tempo o ícone
perfeito da comunidade dos redimidos; esse nexo tipológico e vital aplica-se à
Igreja, considerada tanto no seu conjunto como em cada um dos seus membros,
pois em Maria refulge a condição do perfeito discípulo de Cristo, que todo
cristão é chamado a reproduzir na própria vida.
As
categorias que, em nível celebrativo, ilustram a relação Maria-Igreja podem ser
resumidas na comunhão e na exemplaridade: a assembléia litúrgica
experimenta que na própria oração revive a oração de Maria, e imita sua atitude
interior. Com e como Maria, a Igreja crê, espera, ama, celebra, vive o mistério de
Cristo, rumo à plena participação do Reino dos céus.
A
essência pode ser resumida dando-se realce à memória (louvor, invocação, imitação, comunhão) de Maria no memorial dos mistérios de Cristo,
celebrados com vistas ao mistério da Igreja. Em virtude da presença viva de
Maria nos mistérios históricos da vida de Cristo, ela é reconhecida presente
também na atuação litúrgica daqueles mesmos mistérios, que a viram como
protagonista e sócia, perenemente celebrados a fim de que os fiéis vivam
em-com-por Cristo, a fim de que o corpo eclesial seja edificado conforme a
própria vocação-missão. Atualizando a obra de Cristo, a ação litúrgica dá
origem e alimenta incessantemente o mistério da comunhão “Cristo-Igreja”: nele
resplandece o lugar de Maria. Em âmbito litúrgico, de fato, a piedade mariana
não corre o risco de mariolatria, já que não se propõe uma mariologia separada
do mistério de Deus, um culto mariano desligado do culto cristão: a relação
Igreja-Maria que emerge da celebração está inserida na relação fundamental Trindade-Igreja.
A
vida e a missão de Maria na história da nossa salvação resplandecem em toda a
sua riqueza nas liturgias das solenidades, festas e memórias a ela
expressamente dedicadas ao longo do ano. Mas a recordação dela não se limita
apenas a essas comemorações marianas. Também nos demais sacramentos, sem
transformá-los em celebrações marianas, os textos litúrgicos deixam
transparecer ou acentuam algumas ressonâncias marianas, provenientes do próprio
núcleo do sacramento, diretamente ou por analogia.
Os
nexos explícitos ou evocativos que se encontram em cada sacramento e na
liturgia das Horas, acenamos, por exemplo, que o Lecionário do matrimônio e da
profissão religiosa-consagração virginal propõe trechos evangélicos referentes
a Maria, e que nas Vésperas todos os dias a Igreja canta o Magnificat em
comunhão com Maria e seu exemplo.
A
Eucaristia evoca inefavelmente a Virgem Mãe, pois “do seio virginal da Filha de
Sião germinou aquele que nos nutre com o pão dos anjos” (Prefácio do Advento
II/A). Desde a antiguidade, de fato, a bem-aventurada Virgem Maria é lembrada e
invocada na Oração que se encontra no coração da celebração eucarística; e isso
“não se deve a fatores históricos ou contingentes, mas brota de uma necessidade
interior: sendo a eucaristia celebração plena dos mistérios salvíficos que Deus
realizou por Cristo no Espírito, não pode não lembrar a bem-aventurada santa
Mãe do Salvador, que esteve indissoluvelmente unida a esses mistérios” (OPCAM
19).
O
conhecimento da eucologia (conjunto das orações) favorecerá o homiliasta (aquele
que faz a homilia, reflexão) na tarefa de ajudar os fiéis a fazer exegese
existencial da Palavra proclamada na assembléia, justamente a exemplo da Mãe do
Senhor (cf. Lc 2,19.51). Uma homilia sobre a bem-aventurada Virgem que, “sem
esse norteamento vital acabasse num simples, embora enfeitado encômio,
concorreria para alimentar aquele ‘estéril e efêmero sentimentalismo’,
desaprovado pelo concílio Vat. II, que insidia constantemente a piedade
mariana” (OPCAM 17).
Tendo
como base o evangelho, em cuja luz brilham com tonalidades marianas também as
páginas do AT (esquema anúncio-cumprimento ou exegese tipológica) e da oração
eclesial, a homilia sobre a Virgem Maria fará transparecer atitudes
celebrativas como: memória, experiência,
contemplação, louvor, comunhão, imitação, compromisso.
Visto
que estamos tratando de culto, é necessário ao menos um aceno à chamada piedade
popular (também a liturgia é e deve ser do povo). O fato de que a liturgia seja
“ápice e fonte” da vida da Igreja (SC 10), não tira espaço de práticas de
piedade ou devoções marianas que foram e são objetos de grandes considerações
entre os fiéis.
A
harmonização com a liturgia não significa transformar em expressões litúrgicas
(ou pior, em hibridismo e superposições) as manifestações da piedade popular
(cf. OPCAM 69-72), mas a necessária concordância na diferença-complementariedade
dos campos. É indispensável que os conteúdos e formas da piedade popular
(novenas, tríduos) estejam modulados conforme as Notas e as Orientações já
ilustradas magistralmente por Paulo VI em MC 24-39. Uma renovada
pregação-catequese mariana constitui um momento privilegiado para a promoção,
quer dos valores incontestáveis contidos em várias formas de piedade
(religiosidade) popular, quer da sua necessidade de evangelização-purificação
(cf. OPCAM 66-68; CIC 1674-1676).
Nessa
linha, também as celebrações dos “meses marianos” – que independem do ciclo
litúrgico – devem sabiamente ser sintonizadas e renovadas à luz da liturgia.
Por exemplo, o mês de maio deve estar em harmonia com o tempo pascal com o qual
coincide, pondo em destaque sobretudo a participação de Maria no mistério
pascal-pentecostal de Cristo e da Igreja; as homilias do mês de maio não podem
ser deturpadas por comodismo pelo tradicional “pensamento mariano” (cf. OPCAM
64-65).
5. As celebrações marianas.
Solenidades: Imaculada Conceição da Bem-aventurada Virgem Maria (8
de dezembro); Maria Santíssima Mãe de Deus (1º de janeiro); Anunciação do
Senhor (25 de março); Assunção da Bem-aventurada Virgem Maria (15 de agosto);
Nossa Senhora da Conceição Aparecida (Brasil – 12 de outubro).
Festas: Apresentação do Senhor (2 de fevereiro); Visitação da
Bem-aventurada Virgem Maria (31 de maio); Bem-aventurada Maria Virgem do Monte
Carmelo (16 de julho); Natividade da Bem-aventurada Virgem Maria (8 de
setembro); Nossa Senhora de Guadalupe (América Latina – 12 de dezembro).
Memórias: Bem-aventurada Virgem Maria de Lourdes (11 de fevereiro);
Imaculado Coração da Bem-aventurada Virgem Maria (sábado após o Sagrado Coração
de Jesus); Dedicação da Basílica de Santa Maria Maior (5 de agosto); Bem-aventurada
Virgem Maria Rainha (22 de agosto); Nossa Senhora das Dores (15 de setembro);
Nossa Senhora do Rosário (7 de outubro); Apresentação de Nossa Senhora (21 de
novembro).