O
mês de novembro, para a nossa fé cristã católica, é marcado pela memória dos
falecidos, sejam eles santos ou não, ao mesmo tempo por questões em torno do
morrer e do pós-morte, que envolve a pergunta de sempre: “de onde viemos e para
onde vamos”?
Se
“viemos” de Deus, é para Ele que retornamos. A nossa vida aqui em baixo é o
tempo que Deus nos dá para adquirirmos e provarmos o amor que lhe guardamos no
nosso coração, um amor que devemos provar ser maior que o amor por qualquer dos
bens por Ele criados, como o prazer, a riqueza, a fama ou os amigos. Devemos provar
que o nosso amor resiste à investida dos males criados pelo homem, como a
pobreza, a dor, a humilhação ou a injustiça. Para alguns, o caminho será curto;
para outros, longo. Para uns, suave; para outros, abrupto. Mas acabará para
todos. Todos morremos.
A
morte é a separação da alma e do corpo. Raras vezes se pode determinar o
instante exato em que isso ocorre. No entanto, uma vez que o sangue começa a
coagular e aparece o rigor mortis,
sabemos com certeza que a alma deixou o corpo. O que acontece então? No exato
momento em que a alma abandona o corpo, é julgada por Deus. O juízo individual
da alma imediatamente após a morte chama-se Juízo
Particular.
Onde
é que tem lugar esse juízo particular? Aqui não podemos usar as palavras
“espaço” ou “lugar” no sentido ordinário. A alma não tem que ir a lugar nenhum
para ser julgada. Quanto à forma em que se realiza este juízo particular, só
podemos fazer conjeturas: a única coisa que Deus nos revelou é que haverá um
juízo particular. Os teólogos conjeturam que provavelmente o que acontece é que
a alma se vê como Deus a vê, em estado de graça ou em pecado, e,
consequentemente, sabe qual será seu destino segundo a infinita justiça divina.
Este destino é irrevogável. O tempo de prova e de preparação terminou. A
misericórdia divina fez tudo quanto podia; agora prevalece a justiça de Deus.
Ver CIC (Catecismo da Igreja Católica) ns. 1006 a 1014.
O
que acontece depois? “A doutrina da Igreja afirma a existência do inferno e a sua
eternidade. As almas dos que morrem em estado de pecado mortal descem
imediatamente, depois da morte, aos infernos, onde sofrem as penas do inferno,
o ‘fogo eterno’ (cf. DS 76). A principal pena do inferno consiste na separação
eterna de Deus, único em Quem o homem pode ter a vida e a felicidade para que
foi criado e aspira” (CIC 1035; cf. Também os nn. 1033-4 e 1036-7).
Não
se sabe com certeza como é o inferno, já que ninguém voltou pra contar. A
imagem do fogo é apenas um apelo linguístico para descrever a chamada pena de sentido, mas o mais importante é
a pena de dano, ou seja, a plena
consciência da separação eterna de Deus. No âmbito destas verdades reveladas,
cada qual imagina o inferno a seu modo.
Se
tivermos a graça, rara, de morrermos sem a menor mancha nem vestígio do pecado
em nossa alma, será o momento da nossa mais brilhante vitória: a visão beatífica, gélido termo teológico
que designa a resplandecente realidade que ultrapassa qualquer imaginação ou
descrição humana: o Céu. Não apenas uma “visão” no sentido de “ver” a Deus;
designa também a nossa união com Ele: Deus que toma posse da alma, e a alma que
possui a Deus, numa unidade tão inteiramente arrebatadora que supera sem medida
a do amor humano mais perfeito. Uma felicidade que nada poderá arrebatar-nos.
Um instante de ventura absoluta, que jamais terminará. É a felicidade para
sempre: assim é a essência da glória eterna. Cf. CIC ns. 1023 a 1029.
E
se na hora de nossa morte não estivermos na mais perfeita pureza de alma? Aqui
se põe de manifesto como é razoável a doutrina sobre o purgatório. Mesmo que
esta doutrina não tivesse sido transmitida pela Tradição desde Cristo e os
Apóstolos, a simples razão nos diria que deve haver um processo de purificação
final que lave até a menor imperfeição que se interponha entre a alma e Deus.
Esta é função do estado de sofrimento temporário que chamamos de purgatório.
Cf. CIC 1030-2.
No
purgatório, como no inferno, há uma pena
de sentido, mas, assim como o sofrimento essencial do inferno é a perpétua
separação de Deus, o sofrimento essencial do purgatório será a penosíssima
agonia que a alma tem que sofrer ao ver adiada,
mesmo por um instante, a sua união com Deus. Se nos veio a mente o pensamento a
respeito de “tempo”, não podemos falar dele no sentido que o conhecemos: não
dias ou noites, horas ou minutos. No entanto, se medirmos o purgatório quer em
termos de duração ou de intensidade, é certo que a alma do purgatório não pode
diminuir ou encurtar os seus sofrimentos. Nós, que ainda vivemos na terra, sim,
podemos ajudar essas almas, pela misericórdia divina; a frequência e a
intensidade da nossa oração, seja por uma determinada alma ou por todos os
fiéis defuntos, dar-nos-á a medida do nosso amor.
Talvez
essas realidades nos tragam um pensamento sobre como e quando esse mundo
acabará. Os textos bíblicos descrevem alguns prodígios que precederão o fim do
mundo (cf. Mt 24). Mas tudo isso nos diz bem pouco; já vimos e ouvimos muito
sobre guerras, pestes e outros acontecimentos. O que nos resta é estarmos
preparados e vigilantes, insiste a Palavra de Deus e a nossa liturgia.
Uma
das coisas que sabemos com certeza sobre o fim do mundo é que, quando a
história humana acabar, os corpos de todos os que viveram se levantarão dos
mortos para unir-se novamente às suas almas: é a Ressurreição da carne. Já que foi o homem inteiro, corpo e alma,
quem amou a Deus e o serviu, mesmo à custa da dor e do sacrifício, é justo que
seja o homem inteiro, alma e corpo, quem goze da união eterna com Deus, que é a
recompensa do amor. E já que é o homem inteiro quem rejeita a Deus ao morrer em
pecado, impenitente, é justo que o corpo partilha com a alma a separação eterna
de Deus, que o homem como um todo escolheu.
É
dessa realidade que nasce o culto aos mortos. Cada batizado foi certamente um
templo de Deus, dai o cuidado sobre o momento de sepultar em meio as nossas
orações, afeto e reverencia.
Uma
última realidade presente em nosso credo é o chamado Juízo Universal ou Final.
Este não oferecerá surpresas em relação ao nosso eterno destino. Já teremos
passado pelo Juízo particular; a nossa alma já estará no céu ou no inferno.
Este momento trás a marca da vinda gloriosa de Cristo. O escopo do Juízo final
é dar glória a Deus, manifestando a toda a humanidade a sua justiça, a
sabedoria e a misericórdia. O conjunto da vida – que com tanta frequência nos
parece um emaranhado esquema de acontecimentos sem relação entre si, às vezes
duros e cruéis, às vezes mesmo estúpidos e injustos – desenrolar-se-á diante
dos nossos olhos. Veremos que a minúscula parte da vida que conhecemos se
encaixa no magno conjunto do plano salvífico de Deus para o ser humano. Veremos
que o poder e a sabedoria de Deus, o seu amor e sua misericórdia, foram sempre
o motor do conjunto. “Por que Deus permite que isto aconteça?”, queixamo-nos
com frequência. “Por que Deus faz isto ou aquilo?”, perguntamo-nos. Nesse
momento conheceremos as respostas. Cf. CIC ns. 1038 a 1041.
Todas
essas realidades que abordamos brevemente tem seu aprofundamento nos tratados
teológicos de nossa Igreja. Na nossa doutrina, a morte pode ser um bem. Todos
os dias os católicos se lembram dos limites do seu agora e pedem ajuda à mãe de
Jesus, que cremos estar viva com o Filho, para que ela ore conosco pela graça
de viver bem e de morrer em paz. Aquele que nasceu morrerá! Essa é a realidade.
Para todos chega a hora de ir. Jesus propõe, como vimos, que estejamos
preparados (cf. Mt 24,36-42). Por isso pedimos ajuda do céu para enfrentar
essas duas realidades, o que não é nem nunca foi fácil. Mas, como diz Paulo, há
um momento em que morrer é lucro (cf. Fl 1,21), principalmente quando alguém
combateu o bom combate (cf. 2Tm 4,7) e seu viver foi Cristo (cf. Gl 2,20).
Paulo ainda ensina que Jesus entregou sua vida pelos outros (cf. Rm 5,8). É
graça enorme viver como quem sabe que vai morrer e morrer como quem sabe que
achou o sentido do seu viver.
A
Bíblia está cheia de passagens que falam de abraço, colo, ternura, aconchego,
seio do Deus que perdoa e ama. Também esta cheia de avisos de que a justiça de
Deus funciona. Mas a ideia de raham, colo, está expressa com
clareza nos evangelhos e nas epístolas. Jesus tem ombro de pastor e colo de
amigo. Ele oferece ombro e colo ao pecador e nos convida a ir para onde Ele foi
preparar-nos um lugar (cf. Jo 14,2). Cremos em acolhimento na terra e no céu e
anunciamos que os santos que morreram esperando a misericórdia de Jesus estão
na glória. São nossos antecessores e predecessores. Estão onde estaremos: no
colo de Deus. Por isso podem, sim, orar por nós, tanto quanto os “santos” daqui,
mais sujeitos ao pecado que os de lá, podem orar uns pelos outros. Eles
realmente estão salvos. Os “santos” daqui ainda correm algum risco. Por isso,
segundo Paulo, operam com temor e tremor a sua salvação (cf. Fl 2,12; 2Cor
5,11).
Ver-nos-emos
lá no céu. Quem nos precedeu e nos espera já sabe o que é viver e morrer. Nós,
um dia, como eles, saberemos quem é, como é, como foi. Lá, no “para sempre” e
na eternidade, entre os salvo pela misericórdia e pelas respostas que deram a
Deus e ao próximo, celebraremos para sempre as maravilhas do colo e do amor do
criador.
(Serviram com fontes
para este texto: “A fé explicada” de Leo J. Trese [Ed. Quadrante]; “De volta ao
catolicismo” de Pe. Zezinho, scj [Ed. Paulinas]).
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